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domingo, 21 de junho de 2020

Chantecler-Cabaré das ilusões

CARLOS EDUARDO SANTOS 

O cabaré Chantecler, situado no antigo bairro boêmio do porto, ficará para sempre na memória dos dançarinos da capital de Pernambuco. Notadamente pelos furos que a gente levava nos Cartões de Frequência, para ter o direito de dançar com belas moças.
Um local de fino trato, onde ninguém se recusava a rodopiar no salão, cujo piso era de taco e bem encerado, tendo Inaldo Vilarim por maestro de ótima orquestra e extraordinário repertório romântico.
Ficou fechado durante mais de 30 anos até que a iniciativa privada resolveu apresentar um projeto para ali construir um shopping. Mas ainda hoje permanece como obra parada. Um esqueleto marcado por alegres lembranças dos anos 40/50.
O Chantecler é apenas um símbolo na paisagem da zona boêmia da cidade. Marca forte saudade nas minhas lembranças de solteirice. Com meu tio Sebastião Carvalho, também bancário, solteirão e boêmio, compareci certa noite para conhecer o ambiente.
Subimos uma escada longa, bem lustrada. Ao chegar, graciosa recepcionista nos cumprimentou entregando um “cartão perfurável”, todo cheio de quadradinhos; coisa que não entendi bem para que servia.
No verso, algumas regras de comportamento. Era a forma de registrar quantas vezes os participantes dançavam, a fim de se proceder à cobrança, ao sair. Exigia-se paletó e gravata e não se podia levar companhia. Havia cerca de 20 moças disponíveis distribuídas nas mesas ainda vazias. Estreante, comecei a indagar:
– E se faltar dançarinas?
– Eles mandam buscar as melhores damas do Puteiro de Zulmira!…
Prédio do antigo Chantecler, Av. Marques de Olinda, Recife
No balcão, o gerente Maricel, com quem fiz amizade, empunhava um pequenino alicate niquelado, e após cada parada da música, as dançarinas iam ao balcão para ele fazer funcionar o furador de cartões.
Meu companheiro explicou detalhes. Quanto mais dançássemos maior seria a conta, além das bebidas que ingeríssemos. Sentamo-nos para nos ambientar.
Ele pediu um conhaque, bebida forte, ara “ativar os nervos” e eu, um guaraná Fratelli Vita, que era delicioso mas não ativava coisa nenhuma. Estava explicado como seria a minha participação como estreiante, pois ele sabia de tudo, por ser habitué.
As dançarinas postas à disposição, nas mesas enquanto vazias. Eram educadas, bem vestidas e não tinham aparência de prostitutas.Ficavam sentadas em local visível como se fossem “de amostra”. Tudo com muita classe. Após a primeira dose de guaraná, algumas perguntas e respostas, me animei.
– De onde eles trazem tantas moças?
– Do “estabelecimento” de “Mari Good”, de Natal.
A sorte, de imediato me bafejara. Uma delas, bem jovem, alva, nascida na Suíça Pernambucana, me fitou com certo olhar de “seca pimenta”. Não resisti. Fui arrastar os cambitos. Já atuando no jornalismo fiz breve entrevista, sem intimidades.
– Costuma vir de dançar aqui?
– Sim; além de apreciar músicas gosto de ambiente alegre. É um bom emprego. Qual é sua ocupação?
– Sou jornalista iniciante. Foca, como chamamos. Mas estou de folga. Também trabalho num Banco americano, aqui perto.
Decorrido breve tempo, embalado por emocionante tango de Gardel, notei que os metais da orquestra deram uma paradinha, permanecendo na cena apenas os ritmistas e o som do piano dedilhado por Isnar Mariano. Ela me pediu licença e indagou se eu continuaria na pista com ela.
– Claro que sim!
Naquele momento eu já havia resolvido dançar até não poder mais. Só pra não perder a dançarina e ter que pegar outra qualquer, se desejasse dançar. Naquele instante em que se afastou com a maior classe, notei o discreto gingado. Fora à Recepção. Precisava perfurar meu cartão. Cumpriria a norma. Tudo certo.
Fiquei por ali um tempo semelhante a um décimo de átomo. Meio largado, mas disfarçando o temporário abandono. Mais ansioso do que cadela no cio.
No balcão vi o semblante do Meireles, sorridente, atendendo à furação de cartões, apresentados num relance, por cada uma das jovens, que deixavam seus pares, para “faturar”.
Ao retornar, breves palavras reconfortantes e começamos a dançar o maior sucesso de Bienvenido Granda: “Perfume de Gardênia”. Um bolero de lascar. Ai nossos rostos já se encostavam em certa intimidade. E nada de conversa para evitar que o coração fraquejasse. Mas, na verdade, aquele órgão das sensações estava querendo pular do peito.
Nova parada. Novo furinho no cartão. Aí “deu brabo”… Escutei emocionado o canto de: “Palavras de mujer”, sucesso do portenho Gregório Barrios. Não havia quem aguentasse! Eu já sentia certa “paixonite aguda” me tomando as entranhas do coração. “Tava bebido!”.
Continuei dançando. Mais animado do que pinto no cocô. Era a orquestra parando, ela me largando, Meireles faturando e recomeçando aquele exercício suave de deslizar nas nuvens.
Rosto no rosto, roça não roça, aquele frenesi. Mas, àquelas alturas… quando o salão ficou com luz de buate… aí “deu a muléstia!” Pensei em comprometer minha gratificação de Natal do Banco. Valeria a pena deixar que Meireles completasse o cartão, furando “na doida”, como se diz no vulgo.
Meu cartão viraria um bagaço, pensei. Mas nem liguei. Os rostos colados, aquele roçadinho de coxa muito discreto, quase inocente; o bongô dominando o compasso, o sax dolente recordando Agostin Lara, aqueles dois pauzinhos mágicos emoldurando o compasso dos boleros e o bandoneon chorando na rampa…. Quem resistiria?
Mas a “consciência” do meu bolso, o compromisso de manter meu orçamento no limite para aquela noite… tudo ficou contra meus anseios.
Imaginei a desgraceira se eu dançasse mais algumas vezes. Teria que ir-me, pois meu tio já me olhava preocupado, diante daquela visão do “meu pré-namoro” com a dançarina de Garanhuns, cujo nome nunca perguntei.
Ouço, como se uma punhalada emocional em final de festa, um substituto do grande Nelson interpretar: “Fica comigo esta noite”. Foi o mesmo que me empurrar de escada abaixo. Beijei a mão da moça demonstrando que tinha classe, me despedi, paguei os furos do cartão e sai furado.
A madrugada corria para o amanhecer. Fora aquele o meu primeiro contato com a noite num cabaré alinhado. Dancei um bocado. Saí enamorado. No verso do cartão que guardei por bom tempo, havia uma recomendação: “Nossas dançarinas não têm permissão para sair com os clientes”. Foi um tiro mortal!
O que me lembro, além da moça com quem quase me apaixonei, é que meu cartão ficou mais furado do que uma tábua de pirulitos.

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