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terça-feira, 26 de abril de 2022

É só um brinco

              

Ivar Hartmann

Existe um ditado: “fazendo tempestade em copo d’água”. Vezes sem conta, no dia a dia, aumentamos o valor da pouca coisa, sem poder voltar atrás no que ocorreu e nos desgastando por nada. Como no outro ditado que então não usamos: “não tem solução? Solucionado está!” Não precisamos acreditar nos signos do zodíaco, para saber que cada qual de nós, age de forma distinta a um mesmo impulso. Também que uns “digerem” mais facilmente que outros, algum revés momentâneo. Vejam como o que julgamos uma grande vicissitude se transforma em um nada, frente a um problema realmente grande. Estava em um hotel na orla de Rio Grande, quando minha mulher deu por falta de um brinco do par que ela mais usa. Tínhamos andado de bicicleta e eu voltei no trajeto sem nada encontrar. Malas prontas, descendo pelo elevador, chateada, ela falou: “É só um brinco!”

Já dirigindo, algumas sinaleiras adiante, em uma avenida larga, sem canteiro no meio, que cortava uma região de casas humildes, o trânsito parou. Aos poucos os carros puseram-se em lento movimento e quando cheguei ao ponto onde paravam, duas senhoras de meia idade atravessavam vagarosamente a rua, sem faixa de segurança. Pensei: que imprudência em lugar tão inadequado e cheio de carros. E uma ajudava a outra no lento atravessar. Então vi: a outra tinha uma prótese mecânica, do joelho para baixo. O valor do brinco se desvaneceu em nada. Nada de nada, conforme comentamos. E ao lado da pena, ao lado de saber que a cada ano será mais difícil a vida daquela senhora, que a prótese ajuda, mas não resolve, ficou a evidência do dia a dia de nossas vidas. Quando qualquer probleminha transformamos em dragão. Exatamente por não termos o problemão da mulher que atravessava a rua. 


Promotor de Justiça aposentado

ivar4hartmann@gmail.com

terça-feira, 5 de abril de 2022

Olhando para o lado

             

Ivar Hartmann

Conto bem como foi. Parei no sinal fechado aguardando o verde. Tinha um carro vermelho estacionado no cordão da calçada e me chamou a atenção. Era uma Ferrari. Sim, destas Ferrari que são o sonho de consumo de ao menos cinco entre dez homens. Bem que eu gostaria de ter o prazer de dirigir uma. Lá estava ela. Vermelha com suas linhas diferentes e que tanto barulho faz na F-1, que assistimos. E depois, voltando os olhos para a frente e para o sinal ainda fechado, fiquei matutando que era um carro lindo que eu jamais dirigiria, a não ser locando na Europa e, ainda assim, uma extravagância acima do meu bolso. Sinal ainda fechado olhei para a esquerda para ver o carro ao meu lado. Era uma camionete Fiat que já viveu melhores dias. Meio suja, velha, carregando uns sacos de cimento e uma betoneira atrás. Na frente dois homens vestidos como operários de obra.

Do céu ao inferno terreno em um instante. Eu no meu carro, que longe de ser uma Ferrari, não era o Fiat, de certo do século passado. Neste instante, neste pequeno intervalo do semáforo, neste cruzamento de uma avenida movimentada, correram os extremos. O do carro de luxo que não posso ter e o do carro velho que não preciso ter. E assim é, ao final, nossa vida. Não alcançamos tudo que queríamos, mas, certamente, na maioria dos casos, mais do que esperávamos. Saúde, família, estudo, amizades, conforto. Tanta coisa a agradecer a Deus ou ao destino. Ao trabalho ou ao acaso. Tanto ainda possível de fazer, mas tanto já feito. Esperanças que nascem e morrem e dão lugar a novas esperanças. Nossa vida. No seu dia a dia. Se lembrarmos dos desvalidos, dos cadeirantes, dos doentes, dos mortos estupidamente, quão felizes somos com o que temos. É só valorizarmos. 


Promotor de Justiça aposentado

ivar4hartmann@gmail.com