Ciduca Barros
Eu sou preto e estou velho. Sou velho e ainda concordo com o que disse Georges-Louis Leclerc, Conde de Buffon:
“A idade é um deplorável preconceito aritmético”.
Sou preto e nunca fui vítima de preconceito racial, mesmo quando eu era um moleque, na minha terra natal Caicó (RN), e os outros moleques me chamavam carinhosamente de “Neguinho Ciduca”.
Aliás, o “neguinho” jamais me incomodou, mesmo porque, naquele tempo, ainda não havia o “politicamente correto” que, para mim, muitas vezes não passa de uma monumental frescura.
Voltando ao irreversível tempo, quando eu era um moleque nos sertões do Seridó, nós (eu e os outros moleques), vivíamos “queimados do sol”.
Paradoxalmente, os moleques da nossa geração ficavam “queimados do sol” no inverno. Aliás, quanto maior o inverno mais preto nós ficávamos. Os rios com muita água e os nossos açudes sangrando, o couro dos moleques escurecia e ficava mais espesso do que a pele dos paquidermes.
Nossos banhos no Rio Seridó eram uma aventura à parte. Aqueles moleques da minha geração lembram-se muito bem de que o Rio Seridó quando “descia” com água, “de barreira a barreira”, arrastava na sua trajetória tudo que se encontrava em seu leito seco.
Naquela época, a montante do Rio Seridó não havia muitos reservatórios hídricos. Resultado: com poucas chuvas ele enchia e suas águas chegavam rapidamente à cidade, fazendo a festa da molecada.
Soando um barulho medonho, o rio descia levando em sua enxurrada animais de vários portes como carneiros, ovelhas, bodes, cabras, porcos, jumentos, cavalos, bois, e levava também árvores, estacas e muito arame farpado – as pessoas costumavam “cavar” cacimbas no leito do rio seco e as cercavam para evitar que os animais “baldeassem” as suas águas. O saneamento ainda não havia chegado ali.
E nós, “moleques queimados do sol” daquele tempo como víamos aquilo tudo? Com muita excitação e nenhum temor no coração.
Não me lembro de que, em tempo algum, a rapaziada tenha esperado as primeiras águas passarem para cair dentro do Rio Seridó. Dividindo o espaço com tudo que descia no rio, nós íamos driblando “os corpos estranhos”, os remansos e os lajeiros.
Quanto aos lajeiros, que a cada ano afloravam de uma maneira diferente, nós tínhamos todos “catalogados” em nossa cabeça de vento e, como se tivéssemos um radar (ou seria um sonar?), raramente colidíamos (quando muito, uma ou outra escoriação sem muita gravidade).
Com as contracorrentes, refluxos fluviais ou remansos (que em cada ano mudavam também de lugar) coexistíamos na maior paz. Quando surpreendido por um remanso, o moleque mergulhava e saía por baixo, sempre aproveitando a corrente e sem fazer resistência às águas.
A maioria da juventude do meu tempo aprendeu a nadar naquele barulhento e caudaloso rio. Muitos, enquanto aprendiam a nadar, beberam das suas águas barrentas. Nadamos em águas correntes, o que é totalmente diferente de nadar numa bela piscina olímpica. Para nadar em águas correntes é preciso conhecer alguns macetes. Não podemos nadar contra a correnteza e sim, aproveitar a corrente, para seguir o curso do rio.
Sobejamente, sabíamos dos perigos e das ciladas que aquele rio nos armava, mas nós o dominávamos, sempre com a sua ajuda, sempre sem criar resistência, sempre lhe dando a impressão de que quem mandava era ele.
No verão nós também ficávamos “fubentos”, consequências das monumentais peladas nas areias escaldantes do Rio Seridó, com direito a carimbadas nos ovos ou na “boca do estômago”, com bola de borracha capotão. “Fubentos” cabeceando uma bola suja de areia e tirando o couro da testa. “Fubentos” cabeceando um capotão e a testada acertar exatamente na costura do pito.
Hoje eu sou um preto velho, mas eu também era feliz quando era um “neguinho queimado do sol”.
Escritor e colaborador do Bar de Ferreirinha