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sábado, 28 de julho de 2018

Maracatu atômico

Heraldo Palmeira

Eu era muito jovem quando ouvi um professor dizer que um homem é tanto mais universal quanto mais original se mantém ao representar as riquezas da sua aldeia.

Muito tempo depois eu estava numa grande universidade carioca, envolvido com a produção de um evento dedicado à literatura musical. Naquela semana repleta de nomes conhecidos, o público mal passou de meia casa no enorme teatro.

Até que, numa tarde, foi preciso fechar as portas porque não cabia mais ninguém. Na hora marcada, o homem esguio, lépido e fagueiro entrou. Pelo meio dos comuns, como entram os incomuns.

Ao tempo em que ia caminhando em direção ao palco e sendo notado, foi levando a plateia à loucura. Antes mesmo de abrir a boca, provocou uma espécie de convulsão coletiva. Todos estavam ali para viver duas horas de pura felicidade.

O homem subiu ao palco. E ninguém me contou, eu vi com meus próprios olhos: quase dez minutos de aclamação apaixonada, sem que lhe permitissem abrir a boca para uma única palavra de saudação.

O homem começou a andar de um lado para o outro, parando no centro e em cada um dos extremos do palco. A cada parada um assobio forte, com os dedos indicadores enfiados nos cantos da boca no melhor estilo moleque, espalhando seu combustível para ampliar aquele incêndio emocional.

Ali estava o homem que alguns acusaram de burguês que apropriou-se da arte popular do povo simples. Ali estava o nacionalista que reagiu mal à bossa nova, por considerá-la filha da influência do jazz. Que abominou o tropicalismo estrangeirado pelas guitarras dos baianos fantasiados de mutantes.

Ali estava quem chamou o maioral do mangue beat às falas, bradando seu nome com sotaque sertanejo: “Chico Ciência”. E que caiu em prantos na alça do caixão em sua morte prematura. Ali estava quem descia o pau em Michael Jackson, Madonna e John Lennon com astúcia de matuto. Sem machucar. Alguém que relativizava os Beatles com um displicente e gracioso “é claro que já ouvi falar deles, mas...”.

Ali estava o imortal que pouco aparecia na Academia Brasileira de Letras, pois preferia cavucar o país a ficar tomando chazinho em tardes modorrentas. Ali estava o homem acusado de muita coisa, vítima de muitas invejas e maledicências apenas por ser ele mesmo, daquele jeito arrebatador. Ali estava um homem com coragem para ser original.

Ali estava um guerrilheiro cultural que fez global a arte popular que lhe acusaram de pegar emprestada do povo simples. Que trouxe o mundo para sua aldeia. Ali estava o malabarista da palavra que nos encheu de felicidade por duas horas. Simples, complexo, interativo, dengoso, matreiro, maroto, certeiro, acolhedor, tonitruante, intransigente, delicado, sedutor, sagrado, profano. Engraçado até o talo.

Ali estava, como ele dizia de si mesmo, “um cangaceiro manso, um palhaço frustrado, um frade sem burel, um mentiroso, um professor, um cantador sem repente, um profeta”.

Ali estava uma obra de arte ambulante, um maracatu atômico construído por pitadas populares e eruditas como ninguém jamais misturou. O artesão de um reino cujo mapa seguirá secreto.

Ali estava uma personalidade múltipla, o inigualável Ariano Suassuna. A quem não pude negar, num cantinho escuro daquele palco inesquecível, nenhuma das minhas lágrimas de embevecimento por ver de tão perto tamanha força da natureza.

Um Quixote solitário e genial. Um visionário com seus cata-ventos armoriais soprando brasões inimitáveis sobre a terra brasileira. Um cabra arretado capaz de contrariar o sopro comum ao afirmar que “globalização é o nome novo do velho colonialismo”. Um resistente que jamais cedeu ao computador, preferindo desenhar suas letras maiúsculas com caneta sobre papel antes de convocar a velha máquina de escrever para dar curso ao veio precioso.

Um bicho do mato multimídia manual que destroçou com gaiatice a tecnologia que tentavam lhe apresentar, e que corrigia automaticamente seu nome digitado Ariano Vilar Suassuna: “Como vou escrever numa coisa que me chama Ariano Vilão Assassino?”.

Um homem que, no mundo real, me deixa de luto para o resto da vida – como um Chicó ou um João Grilo sem pai, a quem resta se agarrar à proteção de Nossa Senhora Compadecida dessa orfandade cultural. Um homem que, nas terras da Pedra do Reino, seguirá imperador rindo da morte Caetana para todo o sempre. Como cabe aos colossos imortais.

Veja aqui o relato do dia em que um papangu de vazante tentou converter um maracatu atômico: http://www.youtube.com/watch?v=rlC6oTcSUa4

Saudade de mestre Ariano, nestes quatro anos em que segue viajando pelas galáxias.

Documentarista, produtor cultural e colaborador do Bar de Ferreirinha

Um comentário:

  1. Também nunca vou esquecer a decepção que tive ao saber que Ariano foi muito amigo de Fidel e Chaves. Só isso já dá para destruir um ser que queria parecer amigo dos pobres. Porque burro Ariano nunca foi. Então como entender essa incoerencia?

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