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sábado, 24 de junho de 2017

Mulheres inteligentes

Juliano Martinz 
Era uma garota culta. Notoriamente culta. Poucos atrativos físicos, mas um cérebro de causar inveja. Cursava o último ano de artes. Nas horas vagas, ouvia Pachelbel, lia Sartre, contemplava Dali, consumia Godard. Não simplesmente vivia. Estimulava-se. Exalava saber. Inspirava criação. Criava inspiração.E entre tanto inspirar, ele transpirava paixão. 
Ele, perdidamente apaixonado pela “Garota Saber” que sequer sabia de sua existência. Como ela, ele também não era dotado de atrativos físicos. Diferentemente, era burro como uma porta. Se ao menos tivesse estudado textos sobre mulheres.Mas o amor consegue ser destemidamente desbravador quando quer. Por isso, ele estudou tanto quanto pôde todas as preferências dela, seus gostos. Demasiada informação. Repetição. Associação. Recapitulação. Noites e noites em claro.Mas, ao menos, a recompensa lhe parecia perfeita e eterna.Num barzinho universitário, ela sozinha junto ao balcão. Ele respira fundo. Bem fundo. Aproxima-se, um andar cautelosamente calculado. Senta-se, ao lado, fingindo distração.Ele, após pedir a bebida, sem olhar para ela:
– Esse ambiente é um tanto quanto claustrofóbico. Remete-me a Misery.
– Como?
– Digo: esse bar. Claustrofóbico. Misery.
– Misery? – Ainda reposicionando-se ante a abordagem do “estranho”.
– Uhum. Sir King.
– Ah – um “ah” de quem compreende. Ótimo. Ponto positivo.
– Só faltava estar nevando – brinca, nova referência ao livro.
É – desanimadoramente monossilábica.
E então faz silêncio. Ele esperava um comentário convidativo, algo que fugisse às interjeições desestimuladas. Nada bom. Mas o amor consegue ser tapadamente persistente quando quer. Por isso, ele espera uma “deixa”.
A música ambiente, algum jazz que ele não conhece (o que não é de surpreender), termina, deixando uma aura de silêncio onde sussurros podem ser ouvidos. Ele suspira profundamente. Arremata:
– Play it again, Sam!
Ela sorri. Outro ponto positivo.
– Também amo Casablanca – ela.
– Assisti três vezes.
– Três?
– Essa semana.
– Puxa!
– Sabe como é?!? Um fã inveterado de Humphrey Bogart.
– Eu nem tanto. – E faz silêncio.
Ela discorda. Ponto negativo. E ainda por cima, o silêncio. Ele precisa continuar o assunto que conseguiu arrancar-lhe um sorriso. Mas falar o quê? Nunca assistira Casablanca em toda sua vida. E não conseguia se lembrar dos detalhes do filme que havia estudado, em alguma revista. Pouco importa. Continue. Continue.
– Pobre Scarlett O´Hara – arrisca.
– Como? – Ela ri. – Scarlett O´Hara em Casablanca?
Excesso de informação. Dados cruzados. Reorganize. Reorganize. Scarlett O´Hara. Nunca mais sentirei fome em minha vida. “Minha Vida de Cachorro”? Não. Tente se lembrar das associações. Scarlett. Fome. Sem comida. Sem, porque alguém levou. Comida que o vento levou. Aham, é isso!!!
Pontos de suor aflorando na testa, apressando-se em ressalvar:
– Refiro-me à sessão de logo mais. E o Vento Levou… quarta vez essa semana. Só de lembrar o que a pobre Scarlett vai passar, fico emocionado.
– Sério? Costuma chorar nos filmes?
– Até em Chaplin Marx.
– Quem?
Dados cruzados. Simplifique. Simplifique.
– Hãã… Chaplin, o vagabundo.
– Ah, sim. Ele tempera as piadas com emotividade. Consegue emostar as lágrimas.
– Concordo – Deixaria a palavra “emostar” para o próximo encontro com o Aurélio. – Mas nada que um pouco de Mercury Rev após não resolva.
– Hum… Boa pedida. Mas quer uma sugestão: prefira Smiths. É mais simbiôntico.
Simbiôntico? Biôntico. Biônico. Olho biônico. Eletrônica.
– Sim, um som eletrônico é uma ótima sugestão.
– Smiths, eletrônico?
– Hãã… – Mais suor. Reorganize. Reorganize. Que inferno é esse tal de Smiths? Seria Will Smith??? Arrisque. – É que o rap tem algo de eletrônico.
– Rap?? The Smiths é rock.
– Rock? Sim. Foi o que eu disse. RAP. “Rock to Alternative People”. Um movimento musical ocorrido nos guetos londrinos, iniciado nos anos noventa.
– Smiths nos anos noventa? – rindo.
Anta. Por que não colocou ponto final depois de “londrinos”? Agora se vira.
– Hãã… bem… É que talvez você não tenha ouvido a demo que lançaram na década de noventa, antes de estourarem nos anos dois mil.
– Anos dois mil? – quase gargalhando.
Ele pigarreia. Demasiadamente embaraçado. Quase entregue. Quase… Mas o amor consegue ser insensivelmente cara-de-pau quando quer.
– Me desculpe. Estou um pouco confuso. Qualquer um ficaria após contemplar Rembrandt por duas horas seguidas.
Surpresa:
– Você gosta de Rembrandt? Não acredito! Eu amo Rembrandt. Amo, amo, amo. Me diga: qual seu quadro preferido?
Quadro preferido? E agora? Acesso ao banco de dados mental. Qual era o nome daquela coisa cheia de rabiscos? “La Gioconda”? Não. “Peloton”? Não, esse é um disco do Delgados. “Sagrada Família”? Melhor não arriscar. Cruzamento de informação. Miscelânea. Mistura indigesta. E agora?
Ele, evasivo:
– Prefiro aquela fase após ele cortar a própria orelha.
– Mas quem cortou a orelha foi Van Gogh.
– É… Então… Pra ser bem sincero, estou começando agora a apreciar os pintores italianos.
– Italiano? – Rindo de novo. – Rembrandt era holandês.
– Era? Bem, isso era o que se acreditava no século 15…
– Mas Rembrandt viveu no século 17.
– CHEEEEEGA!!! – grita.
Ele se levanta, furioso, e retira-se do bar sem dizer mais uma palavra sequer. Das aulas com a Garota Saber, aprendeu uma importante lição: mulheres inteligentes são complicadas demais.
E nessas horas, nem o amor.

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