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segunda-feira, 19 de março de 2018

O luar

Gargalheiras, mundo d’água desaparecido
Heraldo Palmeira

O calor insuportável, parecia que se estava dentro de uma estufa. Sol a pino, sem um fiapo de brisa que fosse, o juízo quase batendo pino. As noites não estavam vindo amenas, o vento marinho parecia ter desviado sua rota para outro lugar. Não havia refresco, temperaturas aproximando atrevidamente dos quarenta graus, sensação térmica de alguns tantos mais.

O final da tarde, um pouco mais fresco, pareceu melhor indicado para colocar o carro na estrada rumo ao fim de semana no interior. Por lá, o calor intenso também era tema constante das conversas, ainda mais num cenário de racionamento de água. Pelo menos, a noite quase sempre trazia um vento ameno que desce das serras que circundam o lugar e açoita o vale onde a cidadezinha se esparrama.

As chuvas irregulares que caíram desde o início do ano foram suficientes para deixar o mato verde, fazendo brotar aquela imagem de fertilidade que caracteriza o sertão no inverno. A vegetação viçosa encheu de vida o cinza de caatinga que havia pouco antes.

Sim, era um falso inverno, andava chovendo bem menos do que o necessário, muito distante do que sonha o sertanejo todos os anos. O Dia de São José ainda estava para chegar – é um marco na esperança da gente simples, se esse dia for chuvoso é bom sinal.

A música do mundo tocando no som do carro, a atenção redobrada para evitar os sustos de motoristas mal habilitados, imprudentes que estão em todos os lugares, ainda mais num ambiente de regras muito particulares e fiscalização inexistente.

É sempre bom rever a entrada da cidade no começo da noite, as luzes já acesas, tremeluzindo, iluminando a vida pacata. Por sorte, o ventinho já circulava acolhedor, indicando a primeira calçada de amigos para sentar e aguardar o jantar na velha e boa prosa de muitas gargalhadas. Santo remédio para dissipar a tensão da estrada.

Mais tarde, cansaço dando sinais, hora de pegar a estradinha que leva até a pousada erguida em pedaço reservado no topo de uma pequena colina fora do ambiente urbano. Lugar simples, acolhedor, com o conforto disponível na região. Funcionários amigos de longa data – alguns de infância –, silêncio de área rural, cozinha caseira honesta.

O quarto amplo, à espera, já com ar-condicionado ligado, um dos mimos de sempre. O vento forte que assovia agitando as árvores lá fora até o amanhecer. E cedinho a passarada na sua alvorada perfeita. O sol, quente desde o nascer, iluminando a paisagem desoladora do açude acostumado a ser respeitosamente tratado em muitos milhões de metros cúbicos, agora reduzido a um pequeno poço na base da grande muralha de concreto de sua represa.

Nunca se viu aquilo naquele estado de escassez, o mundo d’água completamente desaparecido, deixando no ar a dúvida incômoda de quanto tempo passará até que se veja a chuva enchendo tudo de novo até a sangria vigorosa sobre a muralha.

Espetáculo tradicional, que junta gente de tudo que é lado, que descerá feroz pelo concreto, rugindo dias a fio, enchendo o rio que segue abaixo, lavando de fertilidade a terra infinita por muitos quilômetros adiante.

Logo depois do café, hora de voltar para a cidade e visitar mais amigos, chegando com algazarra nas casas sempre abertas, acolhedoras. Prosa, prosa, prosa... A resenha que vai sendo construída a gracejos mútuos e gargalhadas a granel.

Mais tarde um pouco, as conversas sérias sobre um projeto cultural que motivou a viagem. Tudo resolvido rapidamente. Algo normal num ambiente onde todos se conhecem há muito tempo.

Os acertos musicais breves com os maestros, a visita ao vigário na casa paroquial – sempre bom estar em dia com o Divino. O almoço a convite de outros amigos, comida feita com esmero, muitos ingredientes produzidos no quintal da casa ou na fazendola da família, distante poucos quilômetros daquela mesa farta e feliz. E o prazer do encontro estampado em cada pessoa presente, até nas que foram sendo apresentadas e virando amigas de infância. Como deve ser sempre que boas amizades têm início.

Outra noite de sono e amanhecer naquele pedaço de paraíso isolado no topo da colina. O dia correndo ligeiro rumo à hora de pegar de novo a estrada para o caminho de volta, apontando muitas casas que não daria tempo de visitar – compromisso assumido para mais na frente no calendário, Semana Santa ou festa da padroeira.

E assim será, como sempre foi. Haverá tempo para um cafezinho, uma refeição robusta, uma prosa com cadeiras na calçada debaixo da sombra de uma árvore, o ventinho maroto como trégua de verão – porque é verão o ano inteiro. Tudo para que não se perca nenhuma oportunidade daquela convivência. Só para lembrar dos bons tempos, como se estes de hoje também não fossem. Paciência! Nossa mania de gostar do passado, de cultuar a nostalgia da terra de nascer e renascer.

A seta piscando, ritual para entrar na estrada. Ali na frente, quase ao alcance da mão, um verdadeiro luar do sertão. O pensamento, amarelado por aquela luz deslumbrante, se curvando diante de tanta beleza.


Se a lua nasce
Por detrás da verde mata
Mais parece um sol de prata
Prateando a solidão
Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão

Amarelo mais para ouro velho, refletido nos olhos serenos que dizem sim ao futuro, que se abrem como um clarão para a vida companheira. Olhos que verão com calor a estrada indispensável até lá. Verão!

Verão que corre la fora cortado pelo carro veloz. E a lua, doce clarão, vai indo para bem longe, subindo, virando prata, mudando a cor dos olhos serenos que avançam sobre o futuro que a gente combinou com a vida que não para de passar. Passado e presente. Futuro que há de vir. E virá, basta ver para crer.


O luar
Do luar não há mais nada a dizer
A não ser
Que a gente precisa ver o luar
Que a gente precisa ver para crer
Diz o dito popular
Uma vez que existe só para ser visto
Se a gente não vê, não há
Se a noite inventa a escuridão
A luz inventa o luar
O olho da vida inventa a visão
Doce clarão

Trechos de:
Luar do sertão (Catulo da Paixão Cearense-João Pernambuco)
Luar (Gilberto Gil)

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