O passar do tempo vai abrandando nossos movimentos de busca por “aquele futuro que nunca chega”
Por Heraldo Palmeira
Quando minha mãe caminhava para os sessenta anos, ficaram mais frequentes seus telefonemas noticiando a morte de algum amigo da família, de um parente, de uma comadre, de alguém de quem gostávamos… Ela buscava, era natural, dividir comigo tristezas comuns, ainda mais porque nossa ligação e afinidade eram enormes e vivíamos distantes mais de 2,5 mil quilômetros.
Comecei a compreender aquilo como uma espécie de esvaziamento natural do seu mundo particular e da vida que ela construíra. Até o ponto de, já octogenária e uma das últimas remanescentes do seu grupo, ter partido e nos deixando com a impressão de que poderia ter vivido um pouco mais. Ao que parece, não lhe interessava permanecer naquele cenário de desmanche afetivo pela perda de tantos, quase todos a quem queria bem.
Despediu-se da vida de forma serena, quase singela – não é fácil juntar morte e singeleza! Por isso, jamais dissipará minha nítida impressão de que ela sempre esteve no comando do processo que a levou à sua hora extrema.
Hoje, os comunicados tristes já não são feitos com o adorno quase cultural dos telefones de baquelita, substituído pela aridez instantânea do mundo digital que matou o tuc tuc tuc eletrônico gerado pelo movimento de retorno do disco dos números ao ponto original de discagem. Pouca gente se dava conta de que a quantidade daqueles pulsos sonoros era correspondente ao algarismo discado.
Os amigos se espalharam por cidades diferentes e distantes, cumprindo os êxodos necessários para garantir a sobrevivência. Celulares, tabletes, computadores e internet suprem, na medida do possível, a falta da convivência cotidiana.
De repente, aquela mensagem de notificação de caixa postal cheia aparece uma, duas, diversas vezes para um mesmo amigo. É a fagulha que aperta o coração, que acende um sinal de alerta. E não há sossego até que tudo fique esclarecido – simples correria cotidiana, viagem de trabalho, férias, convalescença ou, a pior das constatações, saída definitiva de cena.
Esse é o jeito moderno de nos dar conta do avanço do tempo sobre nossas vidas. Não mais cultivamos os relatos falados com a devida dramatização, nem os retratos amarelados do passado em velhos álbuns, até porque já não temos a companhia daqueles parentes que, diante das imagens surradas, explicavam quem era quem no tabuleiro do jogo da vida.
O passar do tempo vai abrandando nossos movimentos de busca por “aquele futuro que nunca chega”, como diz um amigo com impaciência e precisão cirúrgicas.
É estranha a sensação dos primeiros sinais de que aquele futuro é apenas este presente sem graça. É normal recusá-los, como se não nos dissessem respeito. Mas eles dizem, impiedosos. Está na letra do tempo que já passou e no que vai passar sem reduzir a velocidade. Está no branco do cabelo, nas rugas espalhadas pelo rosto. Vai-se perdendo o conceito de muito ou pouco. Sobra apenas a certeza de que volumes e limites ficarão confusos, incertos, imprecisos, dúbios.
De repente, como velhos cães, vamos nos agrupando naturalmente, guiados por interesses comuns. Fortalecendo afetos e fidelidades. Aceitando emergências alheias. Perdoando ausências. Aliviando incompreensões. Dividindo medos e angústias. Amparando inseguranças e perdas. Entendendo a dor alheia que não nos dizia respeito. Recomendando o médico da moda ou o remédio da hora, mesmo sabendo que não farão efeito.
A matilha é sábia, vai se juntando para o fim. Sabe tirar da prática a prática de ir vivendo da melhor maneira possível. Driblando sombras, disfarçando dores, abafando desesperanças, distribuindo sorrisos difusos, variando nas lembranças de amores imaginados, acomodando o corpo para uma soneca, ignorando sinais de alerta. E rindo dos sábios modernos que transformam tudo em conceitos que não conseguem praticar, pois a vida não cabe em teorias acadêmicas.
Como por encanto, caiu da memória direto para as minhas tintas o célebre trecho quase sinônimo de Pessoa “Navegar é preciso, viver não é preciso”, também atribuído a Pompeu, general romano que viveu antes de Cristo. E antes de Pessoa.
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