Retirantes (1944) - Cândido Portinari |
Penso nos meninos e meninas que sofrem em qualquer quadrante do mundo. Por que crianças sofrem, meu bom Deus? Para quê? – na verdade, a pergunta é esta! Fico submerso nesta dúvida que não tem resposta.
Penso nos meninos e meninas que, menino também, conheci desfigurados pela fome das migrações da seca – aquela gente esquálida, famílias inteiras que os adultos da cidade chamavam de retirantes. Eu enxergava apenas as crianças – deixava os adultos para os adultos. Que riam um pouco depois da comida dada com compaixão, que até arriscavam brincar depois do prato. Um ato paliativo de pisar o terreno dos prazeres da infância, que duraria pouco porque havia a estrada por onde seguiriam na marcha em busca de algum milagre.
Penso nas meninas que apressavam meu coração infantil, ansioso por encontrar traços da beleza das princesinhas das histórias infantis. Penso na tristeza que me dominava por perceber que a fantasia das páginas coloridas não se desenhava ali naquele papel enrugado, amarelado, repleto de marcas incontornáveis, praticamente imprestável para rabiscar qualquer coisa feliz.
Penso nos meninos e meninas que, hoje sei, não escapavam de toda sorte de abusos nas trocas cruéis impostas pelo mundo de verdade, impiedoso, capaz de tirar vantagem da miséria que esgota alternativas.
Penso nos meninos e meninas que dependiam de caridade. Que seguiam de pés machucados, com alpercatas remendadas a pregos e grampos, enroladas em molambos para aliviar a precariedade do pisar.
Penso nos meninos e meninas que seguiam naquele cortejo quase fúnebre e ainda se encantavam por alguns segundos diante do grupo escolar, mesmo sabendo que sequer passariam pelo portão. Penso por que eu estava lá dentro, em farda impecável, orgulhoso, por certo causando inveja, labirinto que nunca desvendei.
Penso nos meninos e meninas que ficaram pelo caminho porque não houve tempo para alcançarem o milagre de escapar. Penso que vi tudo isso impotente, sem saber por que valeu a pena escapar sem milagre, por que nunca passei nem perto daquele sofrer, morte em vida.
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Pergunto que danada de sorte foi essa que me escolheu para nascer, crescer e viver sem flagelos. Sem trilhar descalço o pó amarelo das estradas do incerto sem fim. Sem machucar tanto os pés, sem molambos imundos, ensanguentados. Que danada de sorte foi essa que me protegeu, que me levou somente até os calos e leves inchaços, no máximo aos passos em falso indignos de nota?
Ah, o destino! As linhas tortas do mistério, longas ou fatais, sublinhadas pelos acasos e predestinações. Decifradas sem nenhuma certeza pela lábia das videntes e cartomantes, com seus truques, ênfases e incensos penetrantes. Pelo verbo torto das ciganas, que traçavam as cidades com seus dentes de ouro, afiados, reluzentes. Com seus batons extravagantes e roupas incandescentes.
As mesmas esquinas e encruzilhadas, rotas de fuga ou armadilhas tramadas. As forças ocultas indomáveis. O medo das bruxarias. As atrizes que metiam medo na molecada. As eternas simonias, o dinheiro colhido no roçado da boa-fé.
Alguns dias, eu já nem lembrava mais daquele menino sucinto andado sobre os paralelepípedos escaldantes, que me trouxe de volta a dor de tantos meninos e meninas, e suas sinas que eu mal conseguia esboçar.
Madrugada alta, quase amanhecendo. A matriz silenciosa, casa da minha santinha. Dobrei a esquina, susto danado: aquele menino sucinto na ruela. Tive medo dos olhos que me encaravam sem desvio. Dele. Raquítico. Vindo rápido em minha direção, mesmo eu um brutamontes, ele mal alcançando minha cintura.
Era ruela, encontro inevitável, ninguém por perto, pouco espaço para desvencilhar ou recuar. Ele parou, me encarou com a força de quem domina a arte de escapar dos apertos e disse com um fiapo de voz firme:
– O senhor é um moço bonito. Gostei de lhe conhecer porque também gosto de música!
Esbocei um sorriso, pronto para desabar. Ele me estendeu um saco de papel:
– Pode pegar um, está quentinho. Meu pai faz pão, eu vendo. Mas o senhor não precisa pagar. É minha cortesia.
Nem sei se tive tempo de agradecer, o pão nu aquecendo a ponta dos dedos. Caiu sobre mim, como sereno de madrugada, uma música que gostaria de ter ouvido junto com ele:
Debulhar o trigo
Recolher cada bago do trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão
Afagar a terra
Conhecer os desejos da terra
Cio da terra, propícia estação
E fecundar o chão
Ouvi tudo misturado, Milton, Pena Branca, Chico, Xavantinho. O fraseado potente do contrabaixo urbano, a simplicidade das violas do interior. O sobressalto do sino, parceiro do relógio da matriz anunciando juntos que a escuridão da noite estava por um fio diante da manhã iminente. O desenho de um sonho esmaecendo na paisagem, o encanto do conto infantil prestes a ser quebrado pela luz do sol. Hora última para sossegar tantos personagens.
E foi embora ligeiro e me deixou paralisado, com vergonha de chorar por ele, por mim, por todos os meninos e meninas que ressuscitaram naquele nosso encontro breve. Segui sem olhar para trás. Chorei por todos nós. Sem qualquer vergonha. Era tudo que me restava fazer. O milagre do pão!
Entrei na casa semiadormecida no silêncio que eu tanto precisava para adormecer antes que tudo acordasse a tempo de seguir no fio da navalha cotidiano. Acaso? Predestinação? Sorte?
Perguntas para depois do acordar, pois a sonolência é negligente. E a bola de cristal não costuma rodar. E as cartas são marcadas. E os dados viciados estão lançados, prestes a mostrar de um a seis nas contas do crupiê. As apostas estão abertas.
Trechos de:
Cálice (Chico Buarque-Gilberto Gil)
Cio da Terra (Milton Nascimento-Chico Buarque)
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