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quinta-feira, 14 de junho de 2018

Café especial

Foto: Ligia Skowronski (VEJA)
Heraldo Palmeira

Era uma vez um café onde eu nunca havia entrado. Lugar bonito, charmoso, nome francês. Instalado em área nobre da cidade, na calçada principal de um centro comercial erguido há décadas na tradicional avenida. Local que mentes provincianas – ou matutas mesmo – apelidaram de “nossa Oscar Freire”, demonstrando noção nenhuma do que significa o lendário bulevar paulistano. Mas essa já é outra história.

A minha história é inesperada em qualquer praça de comércio do mundo, nestes tempos em que muitos comerciantes e seus funcionários perderam a compreensão do significado de cliente e trocaram para reles consumidor. Ainda mais inesperada para alguém que jamais havia posto os pés ali.

Empurrei a porta naquele quase meio de tarde arejada de junho. O local era pequeno, encontrei apenas uma das poucas mesas ocupadas. Pedi água gasosa, café e um salgado.

Depois dos sabores, um dissabor na hora de pagar a conta: a carteira não estava no bolso. Constrangido, anunciei meu drama para a garçonete. Impávida, e sem demonstrar qualquer sombra de dúvida, me cobriu com uma voz suave e alentadora: “Não tem problema, o senhor passa depois e paga”.

Como um pugilista que acaba de beijar a lona e tem de comprovar ao juiz que pode continuar na luta, ainda balbuciei que só tinha o celular para deixar como garantia. “Não precisa, fique tranquilo”, nocauteou-me a moça.

Restou-me, como último movimento naquele round encerrado, oferecer nome e telefone na comanda das despesas, que ela deixou a meu exclusivo critério anotar. Não tinha qualquer desconfiança para me oferecer.

Transpus com pressa a distância entre a loja e o apartamento da minha irmã, nos arredores – hospedagem inigualável que mereço em terras nativas. Retornei triunfal ao café, pois não só havia reencontrado a carteira em casa, como já levei separado no bolso o dinheiro para quitar aquele vexame que provoquei.

Depois de mais um merecido café de despedida, pisei a calçada e a porta de vidro se fechou atrás de mim. Eu, que vivo reclamando, coberto de razão, da má qualidade generalizada dos serviços e dos “profissionais” que literalmente se escondem atrás dos balcões em quase todos os lugares, acabara de levar um drible desmoralizante de competência comercial e continuava paralisado diante daquela demolidora demonstração de excelência.

Numa hora dessas, pouco importa o tamanho do estabelecimento e os valores financeiros envolvidos. Nada vale tanto quanto a atitude de respeito ao cliente.

Num átimo, desenhei o óbvio na mente: era minha obrigação demonstrar meu encantamento e retribuir aquele gesto fidalgo da moça. Entrei numa grande e bela loja de sapatos e bolsas femininos no mesmo centro comercial, onde fui imediatamente cercado pelo time de vendedoras desocupadas pela falta de clientes.

Disse que queria presentear uma pessoa que me dera uma aula de atendimento e gostaria de deixar um produto pago. Os primeiros movimentos corriam bem, até que informei que a presenteada seria a moça do café da vizinhança:
– A garçonete do café? – quis saber a vendedora, com ar de quem conhecia a moça.
– Sim, ela mesma.
– Senhor, nós não trabalhamos com vale presente.
– Mas eu deixo meu telefone anotado, fico nos arredores para qualquer necessidade...
– O que podemos fazer é lhe ajudar a escolher um presente para ela.
– Não, obrigado. Não tenho como escolher algo tão pessoal para uma pessoa que vi hoje pela primeira vez. Não tenho a menor noção do gosto; nem sei que número ela calça. Quero dar um presente, não um problema de presente.
– Mas, senhor, a gente pode ajudar a escolher um bom presente...
– Não, não. Obrigado, até logo.

Já ia caminhando até a porta, quando me voltei para passar o recibo que considerei pendente:
– Será que se eu quisesse presentear uma colunista social haveria algum problema? Quase certo que ela terminaria escolhendo algo mais caro, além do que paguei. E muito provavelmente “pagaria” a diferença escrevendo uma dessas notinhas vagabundas de jornal.

Saí dali deixando para trás um silêncio absoluto, e com a estranha impressão de que as moças da loja bacana não absorveram bem a ideia de receber, como cliente, a minha cada vez mais valiosa garçonete. Mas não quis acreditar que o fato de ela ser uma negra – de beleza deslumbrante – possa ter interferido na ênfase com que me foi dito “Senhor, nós não trabalhamos com vale presente”.

Entrei numa perfumaria mais adiante. Contei a história que deu origem a tudo e a vendedora ficou encantada. Perfume escolhido, o cartão de troca foi ajuntado dentro da embalagem. Eu não conhecia minha garçonete para saber do seu gosto olfativo, nem podia obrigá-la a carregar um cheiro apenas porque gosto dele.

Naquele já finalzinho de tarde, as mesas da calçada do café estavam lotadas, como costumam ficar nos finaizinhos de tarde. Quem sabe, momento do dia em que a brisa do Atlântico talvez espalhe alguma poção mágica capaz de juntar gente e causar a tal sensação de se estar na rua Oscar Freire. Vá saber!

O interior do salão estava vazio e me acerquei do balcão. Puxei conversa com as três funcionárias. Realcei o episódio que nos uniu naquele dia, mas, para elas, aquilo era “o normal” – claro sinal de que os patrões também deviam estar acima da média.

Ao entregar o presente, fiz questão de dizer que minha namorada e minha filha também usavam. Não queria que o perfume que escolhi deixasse no ar qualquer odor de cantada barata. A minha garçonete recebeu com extrema elegância, sem alarido. Como convém às melhores vendedoras da verdadeira Oscar Freire – onde, dias depois, eu estaria dirigindo filmagens sobre comércio de alto padrão.

No jantar, fiz um relato daquela tarde inesquecível para minha irmã anfitriã. Soube que o dono do café era seu amigo antigo – liguei para ele dias depois.

Soube também que a tal loja de bolsas e sapatos finos, a que não trabalhava com vale presente, costumava enviar lotes de sapatos e bolsas para que minha irmã escolhesse, em casa, o que desejasse. E passasse depois para acertar a conta. Prática comum para “clientes especiais”, quando chegavam novidades.

A postura das vendedoras da loja de bolsas e sapatos finos me causou a desagradável impressão de preferência por mulheres que podem ter os próprios nomes trocados por jornalista, doutora, deputada, senhora, sinhá, sinhazinha, querida, linda, maravilhosa, poderosa, chiquérrima... Vá saber por que minha garçonete não se encaixava nesse grupo de fantasia, mesmo com a conta previamente paga!

Documentarista, produtor cultural e colaborador do Bar de Ferreirinha

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