Páginas

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Pe. Tércio, o Professor

 

Leonardo Braz, advogado

Gostaria de engrossar as fileiras que lamentam o falecimento de Pe. Tércio. Não vou ser redundante em dizer da grande perda para o RN, especialmente para o Seridó. Não vou exaltar sua qualidades de Padre, Monsenhor, Diretor do Colégio Diocesano Seridoense, Vigário Geral da Diocese, Diretor do Sistema de Rural de Comunicação, comunicador, membro do Conselho Estadual da Educação, etc. Quero exaltar a sua maior profissão, a sua maior qualidade: a de Professor.

Corria o ano da graça de 1998 e as aulas da UFRN começariam em uma quinta-feira pós carnaval, dia 26/02. No primeiro dia de aula, nós - os alunos calouros - chegamos mais cedo para tentar escapar do trote, de maneira que às 19:00h a sala já estava completa para a primeira aula. Naquele dia o Campus de Caicó inaugurava o curso de Direito e já no primeiro dia haveria aula efetiva, deixando a aula magna e demais solenidades acadêmicas para uns dias adiante. 

Enquanto não começava a aula, os alunos se apresentavam entre si, naquela balbúrdia saudável do primeiro dia de aula. No meio já de uma quase algazarra típica do Seridó, eis que adentra a sala o Juiz de Direito José Aranha Sobrinho acompanhado de Padre Tércio. Feitas as apresentações de praxe, José Aranha (que era o coordenador do curso) deixa a sala e se inicia a primeira aula com Padre Tércio sendo o professor. Quis saber nossos nomes completos, de onde éramos, o que fazíamos (muitos tinham sido alunos dele no CDS).

Na minha vez, ao dizer meu nome, ele já se adiantou e respondeu: sei que é de Acari! Encabulado, aquiesci. (Foi a forma discreta que ele achou de dizer que sabia do nosso parentesco). Estava diante de uma das referências educacionais do Seridó, não o conhecia pessoalmente, mas sabia de nosso parentesco relativamente próximo pelos laços da mãe dele com minha bisavó Cantidia. (Com o tempo ficamos amigos e ele sempre se referia às festas de S. João do Fazenda Talhado que eram organizadas por meu bisavô José Braz).

Em reuniões familiares já ouvira a história dos nosso parentes que, tendo apenas dois filhos varões, tinham-nos entregues à Igreja, acabando a expectativa da continuidade da prole biológica. Iniciada a aula, suas primeiras colocações foram como um trator passando sobre a turma. Naquele momento, ao ser confrontado nas muitas certezas dos meus 17 anos, percebi que havia chegado ao mundo dos adultos.

Padre Tércio começou a nos fazer perguntas simples (anos depois compreendi que ele utilizava a maiêutica socrática) que nos levavam  à profundas reflexões metafísicas. À medida que novas perguntas eram feitas, o silêncio do alunado se fazia maior, poderíamos ouvir a respiração do colega ao lado, ninguém ousara romper o silêncio para lhe responder. Incomodado com o silêncio que deixava o Professor falando só, tomei coragem e  resolvi responder, com minhas próprias ideias juvenis, uma das questões feitas por ele. 

Não me recordo bem da pergunta, nem tampouco da resposta que ofereci. Só me recordo da tréplica, lançada como espada afiada pelo professor grisalho de olhos azuis, que me atingiu de tal maneira que até hoje ecoa em meus pensamentos: e o que é a verdade? Sei que em minha resposta eu usara o conceito de “verdade” e ele como um bom enxadrista me deu um xeque mate, ali na frente de todos: o que é a verdade? Após ter sido trucidado por tão lacinante pergunta, senti um misto de vergonha por não saber responder e o desejo de descobrir a resposta.

A partir daquele dia não só eu, mas toda nossa turma, desenvolveu aquele misto de temor, admiração e bem querer que marcam as verdadeiras relações de alunos e mestres. Deste dia em diante, naquele semestre, as quintas-feiras eram sempre os dias mais aguardados da semana. Aula após aula éramos “surrados” pela sapiência daquele professor de aparência já frágil com perguntas e teses que nos obrigavam a pensar por uma semana mais. 

Ali pudemos desfrutar do mestre, cuja formação havia se dado na nata das universidades eclesiásticas de uma Roma do pós-guerra, impregnada dos melhores valores humanistas e por uma igreja já tomada pelos valores que guiariam o Vaticano II. Em seguida, ele nos ensinou lógica clássica e, sem dizer, nos ensinou a argumentar, função tão essencial para as carreiras jurídicas. Generoso e rigoroso como os bons seridoenses, ele logo organizou - gratuitamente - um curso básico de latim, extracurricular, para os alunos que tivessem tempo e disposição para fazer, ele dizia que quem quisesse ser bom profissional na vida jurídica teria que dominar o idioma: quanta sabedoria!

O curso foi ministrado no CDS e quem pode fazer teve o privilégio de, além de aprender o latim básico, conviver com aquele mestre que ensinava com a humildade dos sábios, amparado na máxima socrática do “só sei que nada sei”, construindo o saber com os alunos. 

Escrevo este longo texto para concluir dizendo que mesmo sem descendência biológica, a família de Padre Tércio continuará sendo uma das maiores de nossa terra, pois o exercício do sacerdócio aliado ao verdadeiro magistério, fez com que ele tivesse uma legião de “filhos” na fé e no saber que, cada um à sua maneira, seguirá tocado e impactado pelos exemplos e ensinamentos deste verdadeiro pai de muitos.”

Sua morte decorrente de uma infecção pelo Sars-CoV-2 é um duro golpe em todos nós, que nos ensina, da pior maneira, que não se trata só de “uma gripezinha” e ocorre quando o mundo já começara a organizar as primeiras vacinações. Por causa disso, sua cerimônia de exéquias foi compatível com sua certa timidez e verdadeira humildade. Foi uma cerimônia singela e rápida, restrita a poucos colegas de batina, nos impedindo de prestar as homenagens póstumas.

A sua ausência física fará muita falta, sua inteligência arguta, mais ainda. Ficamos todos os seus ex-alunos um pouco órfãos, crendo que seu exemplo frutificará e cumprirá a promessa do evangelho: “Mas o que foi semeado em boa terra é o que ouve e compreende a palavra; e dá fruto, e um produz cem, outro sessenta, e outro trinta.” (Mt. 13:23). Nos despedimos ouvindo sua música “Torna a Surriento”, especialmente o verso que diz: “estou indo embora, adeus.” e agradecendo a Deus sua presença transformadora não só na vida de seus alunos, mas do Seridó e do RN.


Nenhum comentário:

Postar um comentário