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terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Monsenhor Tércio: síntese biográfica e outras anotações


Fernando Antonio Bezerra
 
Texto inserido no livro “Caicó de todos nós”, publicado no ano de 2018.

Ausônio Tércio de Araújo, filho de Ausônio Araújo e Maria Dalila de Araújo, nasceu no Sítio Tamanduá, em Currais Novos, no dia 12 de outubro de 1935. Ainda pensou em ser vaqueiro, mas logo foi tocado pela vocação sacerdotal. Assegura que não teve influência do único irmão, Ausônio Araújo Filho, que também fez opção pelo sacerdócio. Ingressou no Seminário, em Caicó, no ano de 1947, e em 1953 foi enviado para Roma onde concluiu Filosofia e Teologia. No dia 22 de fevereiro de 1960, foi ordenado sacerdote em cerimônia na Basílica de São Marcelo no Vaticano. Em 1962, depois de ter trabalhado em João Pessoa/PB, Currais Novos/RN e Cerro Corá/RN, voltou para Caicó e, de lá até hoje, caminha por suas veredas como sacerdote, educador, comunicador e cidadão. Um grande presente de Currais Novos para Caicó!

O MENINO DO TAMANDUÁ

O mundo inicial de Tércio tinha os limites do mundo que circundava o Sítio Tamanduá e a cidade de Currais Novos. Ele próprio declarou: “lá aprendi a ver o mundo; um mundo que não tinha muita extensão mapeada, cujos limites, porém eram meu mundo: avançava para Santa Cruz, mas não chegava a Natal, incluía Acari, Taperoá, as terras iguais às nossas da Paraíba e tinha longe Caicó, Jardim do Seridó, mas tinha também outras informações, preconceituosas algumas. Só o que era do sertão prestava. Brejeiros eram gente sem determinação, só serviam para ser mandados e não sabiam nada sobre cavalos e gado, só usavam bestas de carga. O litoral não merecia confiança. Era o mundo do Tamanduá que pensava assim ou era todo o sertão? Para mim o problema era inexistente. O Tamanduá era a medida do mundo”.

O Tamanduá o chamava para ser vaqueiro. Era o que pensava também o menino Tércio que, mais taludo, logo se tornou o mais frequente companheiro de seu pai, Ausônio, inclusive, na Prefeitura de Currais Novos, onde ele prestava serviços como funcionário público. Entre o mundo do Tamanduá e a realidade de Currais Novos passou a primeira infância.

Era um tempo cheio de vida. Currais Novos voltando-se para modernidade. Tempo onde ainda repercutia o levante comunista de 1935, em Natal, e muito se falava do cangaço, com personagens ainda vivos que ainda representavam ameaça ao contexto de tranquilidade da época. Aliás, além do comunismo e do cangaço, as ameaças da infância – ouvidas pelo menino Tércio – eram as brigas familiares e o dever de vingança que interrompiam, vez por outra, a paz de um sertão ainda marcadamente rural dos anos 30. 

Como estudante e sempre bom aluno, depois das mestras Rita de Cássia, Creuza, Elza Rosinha, do Grupo Escolar Capitão-Mor Galvão dirigido por Gilberto Pinheiro, Tércio enfrentou o ensino apurado ministrado no Seminário em Caicó. Dado o ensino de qualidade de Currais Novos, alicerce seguro mesmo aos 12 anos de idade, o jovem seminarista enfrentou com sucesso o novo desafio.

A VOCAÇÃO SACERDOTAL

A decisão de ir para o Seminário foi tomada de forma inesperada. Talvez o desejo já lhe fora presente no inconsciente, até pela decisão anterior de Ausônio de Araújo Filho, seu irmão mais velho, já seminarista. Tércio estava na Prefeitura acompanhando o trabalho do pai quando uma prima lhe foi comunicar a decisão do filho em ser Padre. Dona Izabel, a prima, com a comunicação que Omar Mentor iria para o Seminário provocou em Tércio a decisão que não lhe parecia presente: também desejava a vida sacerdotal. Antes, em brincadeiras com amigos, Ausônio, o pai, ao responder uma ou outra provocação sobre a vocação do filho mais velho, dizia: um vai ser padre e o outro (Tércio) vai ser frade!

Sem resistência do pai, Tércio foi conversar com a mãe. Maria Dalila, mais prática, reclamou do enxoval que precisaria providenciar. Sendo um internato, portanto, o enxoval – toalhas, roupas, etc. – era usual e necessário. O dinheiro era bastante limitado, mas tudo foi providenciado, inclusive, a vaga no Seminário. O ano letivo já tinha sido iniciado. Monsenhor Paulo Herôncio de Melo (1901-1963) foi o interlocutor junto a Dom José de Medeiros Delgado (1905 – 1988), então Bispo de Caicó. Tércio chegou, de fato, na segunda turma do Seminário Santo Cura d’Ars. Foi a sua primeira vinda a Caicó.

O Seminário de Caicó da época tinha uma formação mais rígida. A cidade, por sua vez, era diferente daquela de onde vinha. Por Caicó, resquícios da cultura da cana-de-açúcar e de uma agricultura prevalentemente mais próspera. Em Timbaúba, dos Batistas, por exemplo, eram famosos os engenhos, modelo de produção presente no polo seridoense liderado por Caicó. Os filhos das famílias tradicionais, naquela primeira época de Tércio em Caicó, tinham maior presença nos bancos universitários de Recife. Diferente de Currais Novos, uma cidade tendente a costumes modernos e mais próxima da influência de Natal. Foi, em apertada síntese, sua percepção de chegada. Em Caicó, estudou somente no Seminário. De 1947 a 1953, foi seu endereço principal.

Mesmo nas férias, a ida para casa não era por completa... Dom Delgado, bispo em Caicó de 1941 a 1951, mantinha em Florânia um Seminário ferial. Desejava conhecer melhor os seminaristas. No dia a dia não tinha tempo. Procurou construir um momento para tal proximidade. E assim consolidou Florânia como território de formação complementar para os seminaristas diocesanos.

O Seminário funcionava vizinho ao Colégio Diocesano Seridoense, prédio que atualmente abriga a Emissora de Educação Rural de Caicó, na praça justamente nominada de Dom José de Medeiros Delgado. Na época, uma área de expansão urbana, praticamente rural. De lá acompanhou a vida que acontecia fora de seus muros, por meio de Revistas e do Rádio.

De Caicó seguiu para Roma. Era o mais jovem aluno de Filosofia. Um dos mais pobres da turma, tanto é que, nas férias, quando os colegas seguiam para conhecer Países da Europa, o seminarista Tércio se embrenhava pela própria Itália. Aliás, ainda encontrou o País se recompondo da 2º Guerra Mundial, cenários que ele conhecia das revistas e de filmes. Poderia ter tido até mais conforto pela Europa, mas não evitou receber auxílios ou eventuais benefícios. Sempre preferiu a liberdade, a independência.

A DOR SENTIDA LONGE

Na Europa, reclinado sobre os estudos, recebeu a mais triste notícia do tempo de seminarista: seu pai, Ausônio, falecera em Currais Novos. Quando a mensagem chegou em Roma, de fato, Ausônio já havia sido sepultado. Partiu cedo para o horizonte que a fé nos faz enxergar. Nada podia fazer o jovem Tércio do outro lado do Oceano, sem sequer  dispor de comunicação para se inteirar do acontecido. Não havia parentes próximos ou até amigos que conhecessem a dor ali vivida. Sozinho, viveu o momento de provação e tristeza diante da notícia recebida. Ausônio, o pai, era o melhor amigo de Tércio, o filho. Venceu a dureza da distância e da saudade pela disciplina e pela fé.

O REGRESSO E A MISSÃO

Regressando ao Brasil, foi recebido com festa em Currais Novos. Dona Maria, sua mãe, ainda de luto, mesmo vencido o período tradicional, demonstrava o respeito ao esposo Ausônio Araújo, homem de destacada grandeza e de muita fé. Se hoje Monsenhor Tércio é o pai espiritual de tantos, homem disponível para a missão, é devido um agradecimento especial a Ausônio, afinal, não é qualquer católico que entrega dois – e únicos – filhos ao sacerdócio, declinando, em consequência, da eventual descendência biológica de netos e bisnetos.

Ao regressar, contudo, não ficou inicialmente na Diocese de Caicó. Como foi preparado para ser mestre do ensino superior, Padre Tércio foi designado para atuar no Seminário Regional de João Pessoa (PB). Era uma experiência nova que reunia algumas dioceses do Nordeste. Não durou muito tempo. Padre Tércio voltou e passou a ser coadjutor de Monsenhor Paulo Herôncio de Melo, assumindo Cerro Corá.

Contudo, sua formação era para o magistério. Dom Manoel Tavares de Araújo (1912 – 2006), Bispo da Diocese de Caicó no período de 1959 a 1978, o designou para ser Vice-Reitor do Seminário Santo Cura d’Ars. Foi o regresso definitivo para Caicó, lugar da cátedra do Bispo. Aos poucos foi sendo convidado e assumindo funções: Paróquia de Nossa Senhora dos Aflitos, em Jardim de Piranhas; Paróquia de São José; Colégio Diocesano Seridoense; obras e movimentos religiosos.

Em Jardim de Piranhas, participou de uma experiência colegiada juntamente com os Padres Edmundo Kagerer e José Mário de Medeiros; no Diocesano, chegou como ViceDiretor; na Paróquia de São José, não foi o primeiro, mas o Pároco com maior tempo de atuação. Antes dele, Padre João Medeiros Filho e Edmundo Kagerer. Hudson Brandão de Araújo chegou a ser nomeado no início, mas não tomou posse. O próprio Bispo também atuava na Paróquia. A área de São José foi desmembrada da Paróquia de Sant´Ana.

Anos adiante, aliás, a Paróquia de São José gerou outras três: Santa Cruz, sediada em Barra Nova; Santo Estevão Diácono, no bairro Castelo Branco e  adjacências; São Francisco de Assis, a partir do Paulo VI. O território, por muitos anos, foi único e tinha em Padre Tércio o único e disponível sacerdote.

Depois de Dom Manuel Tavares, o Bispo escolhido para Caicó foi Dom Heitor de Araújo Sales, a quem Padre Tércio serviu como Vigário-Geral. No bispado seguinte – sob o pastoreio de Dom Jaime Vieira Rocha – continuou ocupando o mesmo cargo. Foi colaborador dos dois governos episcopais, ambos alinhados com a Igreja de Roma, mas com vocações diferentes. Dom Heitor, Bispo no Seridó que a gente ama, de 1978 a 1993, trabalhou duramente para organizar a Diocese, capacitar os sacerdotes, estruturar as pastorais, equilibrar as contas e o patrimônio. Dom Jaime (de 1996 a 2005), por sua vez, encontrou uma Diocese organizada, voltando-se para os movimentos sociais e gritou com maior ênfase, em nome do povo, por soluções para o desenvolvimento regional. Ambos contaram com a disponibilidade e o destacado esforço de trabalho de Monsenhor Tércio. Além de sacerdote, Monsenhor Tércio foi professor da rede pública de ensino, tanto estadual, quanto federal. Lecionou, inclusive, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Campus de Caicó, onde recebeu solenemente o título de Professor Emérito, maior honraria acadêmica. Participou durante muitos anos do Conselho Estadual de Educação, inclusive, sendo seu Presidente.

De fato, Monsenhor Tércio poderia ter sido na vida tudo o que desejasse. Inteligente, disciplinado e estudioso, o estimado Monsenhor, tendo título de Mestre e outros tantos de pós-graduação, escolheu, contudo, ser pobre. Seus proventos como servidor público aposentado servem para atender pedintes e manter uma modesta casa, com vasta biblioteca, na Praça Dom José de Medeiros Delgado, bem próxima às principais instituições onde atuou, sem remuneração, ao longo das últimas décadas: Colégio Diocesano Seridoense, Emissora de Educação Rural de Caicó, Paróquia de São José, Escola Pré-Vocacional, Círculo de Trabalhadores Cristãos, Diocese de Caicó, dentre outras. Quando o Papa Francisco encanta o mundo por sua simplicidade, a prática não é nenhuma novidade para Monsenhor Tércio que vive, realmente, um espontâneo voto de pobreza desde quando optou pela vida sacerdotal.

Aliás, uma história sacerdotal de mais de 50 anos com grandes feitos. Além de entregar sua própria vida ao serviço da Igreja, levou o Evangelho de Jesus Cristo através de seu próprio testemunho a milhares de pessoas e ergueu, por onde passou, Capelas para o culto divino e para organização das comunidades. Concluiu a Igreja de Santa Cruz, no bairro Barra Nova, e construiu outras sete Capelas em bairros de Caicó. Continua a ser Padre que reza, atende, confessa, pratica a caridade e estimula a consciência do povo a partir de críticas inteligentes, sempre bem colocadas e instigantes. A sua companhia mais frequente é o terço de Nossa Senhora; o seu escudo é a vermelhidão da pele nos dias de impaciência; a sua arma é a coerente fidelidade a Jesus Cristo.

A saúde oscilou muito ao longo das décadas já vividas. Já despistou a “moça caetana” umas três vezes. Vai bem mais longe, com a Graça de Deus!

DOS MUITOS TALENTOS

Não é fácil ser o que ele é: professor, radialista, administrador, pensador, pastor. Desafios, esperanças, sonhos, desalentos, injustiças, decepções, coragem, firmeza, alegrias, dentre outros tantos momentos e sentimentos que permearam uma vida de entrega a Deus e ao próximo. Certamente, nessa caminhada, uma das decisões difíceis foi se afastar da direção do Colégio Diocesano Seridoense (CDS) ao concluir 51 anos de efetiva atuação. A iniciativa de entregar o cargo de Diretor ao Bispo Diocesano em fevereiro de 2015 foi dele, mas, seguramente, não foi uma decisão fácil. A vida de Monsenhor Tércio se confunde com a história do Colégio Diocesano Seridoense. Ao lado de Dom Delgado e Monsenhor Walfredo Gurgel, ele é ícone do CDS e “mourão de aroeira” no terreno fértil da educação seridoense.

Também foi diretor da Emissora de Educação Rural de Caicó AM 830 por mais de 40 anos. De início, somente a Rural de Caicó AM; na década de 80, a Rural FM e, em 1995, a Rural AM Parelhas adquirida sob a liderança dele para a Fundação Sant’Ana. Aliás, Monsenhor Tércio atuou, também, em tratativas com familiares e outras articulações de apoio, para que a Fundação adquirisse a Rádio Currais Novos AM em 2015, mesmo já não sendo diretor das emissoras.

É presente, ainda, em sua vida as associações, os movimentos e as pastorais sociais. As Conferências da Sociedade de São Vicente de Paulo, por exemplo, foram reativadas com o seu pessoal empenho. As Irmandades, especialmente a dos Negros do Rosário, contam com ele em todos os instantes. O Círculo Operário foi outra instituição que dele recebeu o melhor entusiasmo.

O apoio à cultura é outro registro indispensável. Violeiros, atores amadores, pintores, escritores, enfim, a arte e os artistas receberam especial atenção de Monsenhor Tércio, particularmente, a cultura popular. Dela nunca se afastou e, com os meios disponíveis, sempre foi colaborador.

Portanto, o Seridó, a quem ele tanto serve, deve-lhe muitas homenagens. Ele é um otimista em relação ao futuro da região. Alegra-se com suas possibilidades. É fervoroso na crença de que, de fato, o povo do Seridó é especial.

Tanto assim que continua fazendo o que lhe cabe, trabalhando, inquieto, telefonando, reunindo, pregando. Ainda fará muito! É comprometido com todas as missões sob seus cuidados e sua disposição para o trabalho é impressionante. Padre sábio, comunicador eficaz, educador de gerações, amigo leal, Monsenhor Tércio é mestre de muitos talentos que deve ser reverenciado. 

A PALAVRA DE MESTRE

Oportunamente, diante das homenagens recebidas por ocasião dos 80 anos, no dia 12 de outubro de 2015, ele falou com moderação e simplicidade sabendo que sua mensagem passava a ser página da história:

“Não sou técnico em nenhuma área, respeito os que são. Não sou especialista em nada. Sou apenas uma pessoa que vê, respeita e deseja conservar e aumentar o bem que me cerca. Sou um trator guiado por pessoas competentes e temos um objetivo a alcançar. Não lutei para chegar aos níveis altos do poder, porque viver já é muito alto e gostoso. Aprendi a ensejar as pessoas bem prendadas por Deus a realizarem o bem a que estavam fadadas a realizar. Em todos os lugares, respeitando, os meus auxiliares fizeram maravilhas que os outros atribuem a mim e eram deles. Trabalhei muitas vezes com pessoas que não me estimavam, mas que eram fundamentais para a construção do bem e progresso do próximo. Eram pessoas importantes. Aprendi que, muitas vezes, o ótimo é inalcançável, há derrotas mesmo havendo todas as condições adequadas e exigidas para a vitória.

O ser humano se apequena quando está voltado para dentro de si mesmo e prefere o menos bom. Procurei não prejudicar ninguém nas vitórias. Será que sou um santo? São Paulo diz que ninguém se julgue. O julgamento é de Deus. A meu pai que um dia me perguntou o que finalmente eu queria, respondi, com tranquilidade de um pré-jovem: quero sorrir. Ele não gostou e retirou-se. Hoje, aos 80 anos, acho que não teria outra resposta. De fato não tinha sonhos, desejos especiais. “A coisa mais importante da vida é sorrir sempre nos bons e maus momentos”. Foi meu presente dado aos amigos na festa dos 50 anos de permanência no CDS, conselho que nem todos entenderam.

Deus deu-me sempre o privilégio de auxiliares privilegiados, na JOC, no CDS, na Paróquia, na Emissora, no Conselho Estadual de Educação... Eles fizeram o que eu devia fazer. Deus sabe e os têm no coração. Foram homens e mulheres, jovens e anciãos, técnicos, poetas, santos, famosos e humildes. Como poderia fazer tanto em uma vida tão curta? Somente 80 anos?

Não lerei sua longa lista. Eles estão guardados no meu coração e no de Deus.

Talvez alguns nem pensem que foram grandes.

Monsenhor Ausônio Tércio de Araújo

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