Heraldo Palmeira
A visão geral já consagrou que 2020 parou em março e ficamos no mesmo dia sombrio até o 31 de dezembro.
Nesta virada do tempo que vivemos de ontem para hoje, onde um reles segundo foi suficiente para nos mudar de ano e renovar esperanças, será ótimo se houver tempo para uma oração, mesmo que seja rápida. Se houver tempo para a gente pensar em tudo que nos incomodou no ano que acabou. Se houver tempo para a gente pensar no quanto incomodamos – ninguém é perfeito, nem mesmo nós e nossas verdades que desejamos absolutas, acredite.
Será ótimo pensar que é possível preparar nosso espírito para tentar estabelecer uma vida melhor aliviando nossas posturas, melhorando a convivência com o mundo. Sim, até mesmo com aquelas figuras que nos embrulham o estômago, mas que ainda cruzam nosso caminho.
Será ótimo a gente trabalhar nosso espírito para, no ano-novo, produzirmos muito mais fatos relevantes do que fotos arrumadinhas para as redes sociais.
Se houver um tempinho para aquela oração, pense nas pessoas que estão sozinhas. Muitas por pura contingência. Muitas porque, mesmo cercadas de gente por todos os lados, criaram contingências para a solidão. Muitas porque nem contingência restou.
Não esqueça de incluir as que perderam para a pandemia a própria vida ou vidas imperdíveis. Não duvide, há um sofrimento descomunal que talvez tenhamos relativizado porque olhamos demais para os nossos umbigos.
Erga também um brinde aos profissionais da saúde porque muitos de nós não é sequer capaz de avaliar o que essa gente realizou de bem sem olhar a quem. Serão eles que, mesmo compreensivelmente se sentindo traídos, vão acolher, tratar e salvar aqueles que seguem ridicularizando máscaras, medidas básicas de proteção e atacando o esforço que a ciência fez para nos trazer vacinas em tempo recorde.
É claro que não estou falando daqueles charlatães que vergonhosamente tentaram ganhar holofotes enquanto a única certeza que havia era o medo do inimigo desconhecido. Esses começam a ser tratados pelo senhor de tudo, o tempo.
Felizardo, ganhei da vida umas outras três ou quatro mães além de dona Toinha Palmeira, a original, de sangue, que está treze anos adiante de mim no tempo do infinito. Pois, ontem, recebi fotos redentoras de uma delas, mostrando a criaturinha danada – bem avançada além dos noventa anos – com a melhor cara do mundo, cuidando do pequeno jardim que mantém em sua casa.
Não faz muito ela sabiamente se pôs em recesso digital. Resolveu que ficaria fora do mar de mensagens que tentam nos afogar durante as vinte e quatro horas de cada dia. Sábia, “desligou a antena” por tempo suficiente para ser esquecida pela sanha das redes sociais e fez uma limpeza na lista de contatos, enviando chatos e radicais para a lixeira. Está de volta, feliz da vida, conectada a uma rede de algodão com varandas de renda bordada, onde só têm acesso felizardos como eu!
Pendurada no alpendre da casa praiana onde estou em temporada de isolamento e de achar a vida boa, uma bela peça do artesanato local dança ao sabor do vento marinho e não deixa dúvidas: “Palavras mudam um dia. Atitudes mudam uma vida”.
A atitude da minha mãe extra é a prova viva de que 2020 forneceu tempo suficiente para jogar no lixo aquelas ladainhas ignorantes que propagam um ritual achista-ideológico de bobagens. Na verdade, estamos fartos das pessoas que conhecíamos razoáveis e vestiram paramentos de sacerdotes das sandices.
Se o ano velho pôs o mundo de ponta-cabeça e finalmente viramos sua última página, nada melhor do que manter o mais saudável distanciamento social de tudo que ficou cansativo, inclusive depois que a pandemia for finalmente vacinada. Afinal, quem ajudou a piorar 2020 vade-retro com ele para o raio que os partam.
Estou aqui espichado numa rede de algodão com varandas de renda bordada e olhando para a placa pendurada no alpendre. O vento marinho é senhor do ambiente e mensageiro de um sussurro de paz. Mudou de dia, já é ano-novo que traz um tempo de atitude. Feliz 2021!
Praia de Pipa (RN), bem no comecinho de janeiro de 2021
Heraldo Palmeira é produtor cultural e colaborador do Bar de Ferreirinha
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