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terça-feira, 12 de novembro de 2019

O universo em um ponto


Hoje é dia de estreia no Bar de Ferreirinha, espaço anárquico-etílico-cultural especialista em tudo e nada ao mesmo tempo, agora e para sempre, amém! 
Jesus de Ritinha de Miúdo é um beradeiro munganguento que nasceu nas ribeiras do Acary do Seridó, foi moleque nas ruas ao redor da Igreja de Nossa Senhora da Guia, tomou banho no Gargalheiras, apaixonou-se pelas letras, saiu para o mundo e aportou aqui pra contar suas lorotas. 
E, claro, divertir os bêbados que se acotovelam diariamente no balcão deste Bar virtual, especializado em porra nenhuma e escrotices em geral. 
Foram anos de negociações pra este orgasmo de hoje. 
Ontem, o Jornal Nacional especulou que a contratação do menino do zói verde foi uma das mais caras do mercado blogal do país. 
As Organizações Bar de Ferreirinha não desmentem nem confirmam, mas anunciam com todas as honras, sob fogos e fanfarras: senhoras e senhores, bêbados do Brasil varonil, com vocês... Jesus de Ritinha de Miúdo! 
Sim, quase esqueçemos: ele vai escrever toda segunda-feira. 
Hoje é terça, 12/11/2019... Mas, e daí? 
Roberto e Pituleira, editores (ir)responsáveis

(Saudades de Adriano de Auta)
Não obstante o estresse e a correria de final de mês – natural pelo fechamento das metas – e os preparativos para o casamento da minha Joana Raquel, depois de amanhã, eu hoje passei o dia me lembrando de Adriano de Auta. O motivo? Não o sei ao certo.
Talvez por uma série de acontecimentos.
Quiçá essa lembrança renitente deva-se pela conversa tida com Jessier Quirino ontem à noite. Quase meia hora de boa prosa, onde falamos de coisas admiradas por nós dois, e das semelhanças existentes entre os sertanejos, beradeiros, bebinhos, doidelos e outros tipos povoando os nossos sertões – que aliás segundo Oswaldo Lamartine, cada um possui o seu próprio.
Falei sobre Adriano como quem fala de algo amado e ao mesmo tempo sumido. Seu nome veio por gravidade, quando falamos sobre artistas que se perdem por esses sertões de meu Deus.
José Adriano Dantas da Silva fez parte da minha infância, adolescência, juventude e quando nos tornamos homens feitos; primeiro como amigo e depois quase como irmão, quando lutamos juntos pela vida dividindo o mesmo quarto empoeirado de uma casa em reforma, lá em Caicó. Já adultos, eu casado e ele apaixonado por alguém distante. Éramos confidentes um do outro, eu o apoiando e ele me fazendo esquecer a saudade da esposa e dos meus filhos ainda pequenos, naqueles dias de novecentos e noventa e quatro quase terminando.
Tínhamos a Esperança embalando nossas redes, cantando tornos madrugada afora. Um esperando o outro adormecer. Ali ele já era Adriano Dantas Bezerra. Um homem feito com um coração de menino.
Assim seguimos por quatro meses, até que um dia ele me chegou com a novidade nas mãos: tinha uma passagem de ida para São Paulo. Era sua última semana no quarto empoeirado da casa sendo reformada.
Em Caicó Adriano fazia de dois a três salários por quinzena. Foi embora sob os meus protestos e conselhos; no entanto, meus argumentos não foram convincentes o bastante para barrar o Sonho da Cidade Grande. Partiu depois de um abraço demorado e augúrios de boa sorte, um desejando ao outro sob a sombra da algaroba do Barraco de Seu Zé Faustino. Fiz questão de ir me despedir dois dias antes de sua viagem.
Em São Paulo um emprego apadrinhado por Tunéa de João Muniz o esperava. “Fichou assim que chegou”, me diria seis dias depois Auta, sua mãe, olhos marejados entre a saudade do caçula e a felicidade de sabê-lo bem.
Eu tinha certeza que sua ascensão na companhia não demoraria.
Não demorou.
Não demorou muito e descobriram o seu extraordinário talento para o desenho. Era a oportunidade do auxiliar de máquina no chão da fábrica partir direto para um escritório moderno, com direito a treinamento na Argentina. Foi Tunéa quem me contou os detalhes.
Um teste foi marcado. Era preciso demonstrar a sua capacidade, técnica e criatividade.
Ele se apresentou ao “Chefe da Criação”. Apertos de mãos, e aquele discurso tradicional para deixar o sujeito à vontade. Não tinha cronômetro para limitar o espaço, porque a inspiração muitas vezes necessita de tempo.
- Você tem uma folha de ofício para desenhar algo livre – falou o homem, empurrando ao seu encontro uma folha A4 em branco e uma caneta nanquim.
A cara de um bezerro mamando foi gerada, o ubre cheio se destacando pelas outras tetas vazias.
Na meia folha de ofício, entregue depois, nasceu uma árvore tipo bonsai. Seus pequenos frutos eram lábios sorrindo.
No quarto de folha de ofício, Adriano trouxe ao mundo uma bailarina equilibrando-se sobre uma perna só. Vestia algo se assemelhando a um coração.
Quando a folha foi dividida em oito partes, em uma delas o rosto de Carlitos surgiu sorrindo em poucos minutos. Era a sua especialidade. No chapéu coco uma estrela disfarçada enfeitava representando um brilho.
E a folha foi diminuindo e recebendo os belos traços de sua imaginação. Até que lhe foi apresentado um papel especial, traçado em linhas horizontais cruzando linhas verticais e criando espaços minúsculos.
- Você tem agora um milímetro quadrado para desenhar algo – explicou-lhe o homem. – Consegue? – desafiou com um sorriso no canto da boca.
Adriano segurou o papel e sorriu de volta para o homem. Pegou a caneta nanquim e mirou bem no meio da folha. Cuidando para centralizar, assentou um ponto em um dos quadrados.
Devolveu a folha.
- Realmente. Aí só caberia um ponto – falou o homem puxando o papel ao seu encontro.
Adriano se escorou no espaldar da cadeira pela primeira vez e, relaxando com os cotovelos apoiados, soltou a pergunta de sua criatividade:
- O senhor só enxerga um ponto? – fez cara de espanto e completou: - Como se eu desenhei o universo?


PS.: Por entender que deveria participar de uma greve duas semanas depois, leu seu nome na relação das demissões. A ordem para a compra da passagem para a Argentina já havia sido expedida.

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