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domingo, 17 de novembro de 2019

Quem é cativo não ama


Ciduca Barros

Por que será que, quando nos aproximamos do fim da nossa jornada aqui na terra, nossa memória, periodicamente e incontrolavelmente, dá um retrocesso e vem à mente um capítulo do filme de nosso remoto passado? E tem mais: é um filme em preto e branco, mas sonoro.
Esta semana precisei me levantar mais cedo da cama para tratar de um negócio e parece que ouvi a minha mãe falar ao meu ouvido uma frase dita milhares de vezes quando ela, para afugentar o meu sono, tentava me acordar para ir ao colégio: Acorda! Quem é cativo não ama!
Ainda jovem, com a experiência ainda nos pés, nunca parei para analisar aquela frase. Ao contrário, eu a odiava porque era como um despertador e ninguém gosta de ser despertado à pulso. 
Posteriormente, com minha experiência mais acima, constatei que “cativo” é quem perdeu a sua liberdade, escravo, preso ou encarcerado, e quem está nessa condição não tem vontades. Aliás, quando eu ouvia aquela detestável frase eu não era encarcerado, mas ainda não tinha a minha total independência.
E, lembrando-me daquela frase despertadora, voltam à memória outros adágios com os quais nossa mãe tentava ajudar a nossa personalidade ainda em formação. Palavras de encorajamento, de confiança, de resiliência, de estímulo e de ânimo. Em resumo, as mães do passado nos davam, diariamente, aulas de moral, educação e civismo.
Chiquinha (mãe de Ciduca) e Djanira (tia)
Elas sempre nos ensinaram a tratar aos demais com respeito e urbanidade, no entanto sem esquecer o limite desse respeito. E por isso elas diziam: Quem muito se abaixa, o fundo aparece!
Ou então: Uma coisa é dar, outra coisa é arregaçar!
Quando ainda pequenos, e achando que ainda era cedo para desenvolvermos certas habilidades sugeridas por elas, ouvíamos: Espinho quando tem de furar, desde pequeno traz a ponta!
Suas lições eram contundentes quando queria evitar que seus filhos se tornassem linguarudos: O sujo falando do mal-lavado!”. Ou então: Quem disso fala, disso usa!”, e ainda:
Macaco só vê o rabo dos outros!”. E mais: Só vemos o argueiro no olho do próximo!”.
Naquelas ocasiões em que seus filhos de metiam em enrascada e elas se negavam a ajudá-los: Quem pariu Mateus, que balance!”, ou: Quem procura, acha!”.
Quando começamos a namorar e alguém falava em matrimônio, a opinião delas sobre casório era mortal: No começo, tudo são flores!”, ou: Quem vê cara não vê coração!”.
Nos ensinando dispensar portadores: Quem quer vai, quem não quer manda!”. 
E quando elas não descobriam quem praticou determinado erro, e disciplinavam geral: Hoje, o justo vai pagar pelo pecador!”. Quando elas queriam que fossemos para uma festa com uma roupa muito usada: De noite, todos os gatos são pardos!”.
Suas noras chegaram e também ouviram: Quem meu filho beija, minha boca adoça!”. Elas nos ensinaram economia. Devíamos saber poupar, mas precisávamos estabelecer o limite para tal. Economia sem pão-durismo: Quem guarda com fome, o gato vem e come!”.
Em qualquer fase de nossa idade, mesmo quando já eramos adultos, ainda ouvimos aquela advertência que continua reverberando em nossos ouvidos: Quem avisa, amigo é!”.
Nossas mães usaram palavras que eu nunca mais ouvi, parece que morreram com elas: pucumã, enxerimento, ruge, califon, urupemba, bucho, cururu, catacumba, goela, fastio, lorde, chique, ramo (derrame cerebral), ponche, buliçoso, aboticado, alinhavado, carregação, enfarento, antojo, arengueiro, caduco, chafurdo, encardido, enredo, esparramado, estatelado, esturricado, puxavante, manco, monturo, sapecado e uma gama de outras que não elenco aqui por falta de espaço.
Nossas mães envelheceram e nunca aceitaram reciclar o seu arcaico vocabulário. E quando tentávamos atualizá-las, ouvíamos: Vão pra China!”.
As palavras obsoletas da linguagem informal, bem como os provérbios/adágios centenários e com cheiro de naftalina, das nossas velhas mães, nunca abandonaram os nossos ouvidos e, às vezes, nos pegamos pronunciando algumas delas.
Oxalá os nossos netos nos escutem!

Escritor e colaborador do Bar de Ferreirinha

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