Páginas

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Diarreias mentais - CLXVII


A onça

Nós, sertanejos, sempre tivemos fama de exagerar quando contamos um causo. Eu concordo, em parte. Realmente, às vezes, pintamos uma história com cores tão fortes que chegam até às raias da mentira. Um exemplo patente é aquele exagerado caso, contado por um conterrâneo e já narrado por mim em livro com o título de U-BOAT, daquele submarino alemão que surgiu no açude do seu avô lá no Seridó, nos idos de 1940, durante a Segunda Guerra Mundial.
Chamem de inverossímis, fantásticas, exageradas, fantasiosas ou nome que se queira dar, porém essas “mentiradas” são muito engraçadas. 
Eis que, lendo um texto da grande escritora cearense Raquel de Queiroz, escrito na década de 1960, subordinado ao título “O Caçador de Tatu”, vieram à minha mente as inúmeras histórias exageradas do nosso povo sertanejo. 
Conta Raquel de Queiroz que, nos alpendres da fazenda dos seus pais, lá no município de Quixadá, Ceará, as noites eram alegradas por histórias fantasiosas da gente daquele lugar. 
Certa noite, um morador do lugar de nome Manuel Vieira, mas conhecido por Vieirinha (que não tinha nem um metro e meio, mas a sua mulher já havia parido trigêmeos), sentado num banco debaixo de um pé de jucá, espiando a lua e fazendo um cigarro de fumo brabo, contou um fato que sucedeu num povoado lá dos arredores.
Segundo Vieirinha, naquelas quebradas de serra ainda havia muitas onças. Ali, vivia um caboclo que era caçador de tatu, bicho que só se caça de noite. E certa boca de noite, o caçador de tatu saiu de sua casa e partiu para o mato, armado de enxada, pá e chibanca, instrumentos próprios para se desenterrar tatus, levando uma jumenta com dois caçuás para trazer a caça.
Depois de tirar os arreios, deixou a jumenta amarrada num pé de pau e adentrou no mato com os ferros. Naquela noite, a caça estava farta. Ele pegou cinco tatus verdadeiros e três pebas. Na volta, madrugada já alta, procurou o local onde deixara a jumenta para arreá-la e voltar para casa.
Como estava escuro como breu, ele demorou a encontrar o animal. Encontrou, mas não sabia o que diabos acontecera com a jumentinha, pois ela que era muito dócil, estava muita agitada. Parecia uma mula sem cabeça, rosnando e mordendo feito o Cão. No entanto, o caçador era um homem determinado e sabia que, mesmo com dificuldades, tinha que arrear a jumenta. Levou umas quedas, mas lhe passou o cabresto e a cangalha. Botou os caçuás e montou-se.
Mal ele montou, o animal saiu numa disparada louca e desenfreada. Parecia que a jumenta estava possessa. Desembestou de mundo afora, passou faiscando por tudo que era descampado. Quando o pobre do caçador deu por si, estava trepado, com jumenta e tudo bem no olho duma aroeira. E ali ficou.
Quando a barra do dia já vinha clareando, o caçador baixou os olhos para ver a jumenta. Que jumenta que nada! Ele estava montado numa onça pintada, que tinha comido a sua jumenta e estava de barriga cheia. 
Bem que lhe pareceu que a sua jumenta estava diferente...

Ciduca Barros é escritor e colaborador do Bar de Ferreirinha

Nenhum comentário:

Postar um comentário