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domingo, 20 de outubro de 2019

Madrugadas (2)


Ciduca Barros

Quando os tempos eram outros, eram nas madrugadas que atuavam os padeiros e os leiteiros. Inúmeras vezes, vimos, nas primeiras horas da manhã. as nossas mães, em Caicó das décadas de 1940/1950, abrindo a janela e ali encontrando o saquinho dos pães e o litro do leite, deixados na madrugada pelos vendedores. 
E o velho e ultrapassado guarda-noturno das madrugadas de outrora?
 Lembram-se daquela figura, andando pela madrugada a dentro, pelas desertas ruas das nossas cidades, sempre com o seu indefectível apito, zelando pelo sono reparador dos seus moradores? Era também incumbência do guarda-noturno acordar as pessoas que iriam viajar de madrugada. O cara não confiava no seu despertador e, temendo perder o ônibus (ou a velha sopa) o que fazia? Acionava o guarda-noturno.        Pelo silêncio que a madrugada proporcionava, assim como pelas sombras misteriosas da escuridão da noite, era o momento onde muitos fatos suspeitos aconteciam. Como exemplo, leia a história, que já a narrei no passado, envolvendo a madrugada, um humilde guarda-noturno e uma séria suspeita de infidelidade feminina:
“Naquela cidadezinha seridoense do passado, corria pachorrentamente a década de 1950. O Brasil sem os grandes assaltos, crimes bárbaros e outras misérias que vemos atualmente e a todo o momento. Mesmo assim, aquela pequena cidade adotava a figura do guarda-noturno – indivíduo que, por conta dos habitantes ou negociantes, guardava de noite, rondando e vigiando as entradas das habitações ou casas de negócio. A cidade ainda utilizava o velho e tradicional motor de luz, grande gerador de energia elétrica responsável pela iluminação pública que, infelizmente, funcionava apenas das 18 às 23 horas.
Naquela época, a moral, a ética, a honestidade e os bons costumes ainda estavam em voga, mas por falta de lazer e diversão as pessoas comentavam demais a vida alheia.  Os moradores da cidade começaram a falar de uma honrada e respeitada senhora da sociedade, cujo marido, um conceituado comerciante, que para tratar de seus negócios, viajava muito. 
De tanto falarem, o assunto chegou aos ouvidos do marido. Este, botando a mão no fogo pela honra da sua consorte, foi à Delegacia de Polícia, prestou queixa e exigiu da autoridade policial as providências cabíveis, visando coibir aquele boato maledicente. O delegado abriu o competente inquérito policial. Intimou pessoas. Arrolou testemunhas.
Uma das pessoas intimadas informou que o guarda-noturno da rua viu o suspeito entrando, de madrugada, na casa do queixoso, que naquela ocasião estava viajando. O delegado, mostrando que estava ali para apurar os fatos, convocou os implicados para uma audiência de acareação. 
Na audiência, estavam o querelante, o indigitado e o desafortunado guarda-noturno. No calor do inquérito policial, o Delegado voltou-se para o humilde vigia e perguntou:
– Seu Joaquim, é verdade que o senhor viu esse cidadão, senhor Ricardão, entrando, em plena madrugada, na casa do senhor Cornélio, aqui presente?
Seu Quincas, simples e leal guarda-noturno, mostrando-se indignado com a pergunta da autoridade, ensaiou um pequeno discurso de moral e respeitabilidade:
– Doutor Delegado, eu sou um homem pobre e humilde, porém sou honrado e honesto. Nunca, jamais, faltei com a verdade em toda a minha vida. Desta boca ninguém jamais ouvirá sair uma mentira. Portanto, não é verdade que eu vi esse cidadão “entrando”, de madrugada, na casa desse outro cidadão.
E quando os indiciados foram respirando aliviados, seu Joaquim detonou:
– Eu vi quando ele “saiu”!
Por tudo isto, e por muito mais que as frias primeiras horas do dia nos esconderam, eu continuo gostando das primeiras horas do dia, nossa icônica e, muitas vezes misteriosa madrugada.
Escritor e colaborador do Bar de Ferreirinha

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