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domingo, 8 de setembro de 2019

Uma mulher empoderada


Ciduca Barros

Eu costumo dizer que o que existe de melhor no Seridó é o seu povo. Uma brava gente que vive sob um calor escaldante, tirando a sua subsistência de uma região semiárida e, muitas vezes, hostil, tem que ser respeitada por sua determinação, capacidade e coragem. 
Pessoas comuns que enfrentam, com denodo, as intempéries (inclusive as estiagens constantes) e as vicissitudes da vida, demonstrando força e energia moral. Esse povo tem que ser admirado e respeitado. Dentro dessa saga de lutas e vitórias, a mulher seridoense é uma epopeia à parte. 
Atualmente, muito se fala sobre a necessidade de a mulher conquistar o seu próprio espaço. No âmbito social, esportivo, profissional ou em quaisquer outros campos da atividade humana, somos unânimes em torcer para que nossas mulheres alcancem seus próprios caminhos, sem que isto seja preciso uma disputa desnecessária com o mundo masculino. Nessa labuta das meninas, a todo instante, estamos ouvindo uma palavra nova: “empoderamento” (uma tradução do termo inglês empowerment). 
E de tanto ler e ouvir sobre a necessidade do “empoderamento das mulheres”, me veio à lembrança uma mulher caicoense que, com toda a sua humildade, muito antes de criarem o vocábulo “empoderamento”, com muita força e persistência conquistou a sua subsistência, num mundo essencialmente masculino e numa época em que imperava o machismo.
Na década de 1940, quando o mundo vivia a 2a Guerra Mundial e ela ainda era uma adolescente, talvez tenha ouvido através do radio AM que o trabalho das mulheres, lá na distante Europa, também foi de primordial importância no esforço de guerra. 
Naquele tumultuado tempo, a mulherada europeia foi mobilizada para trabalhar na fabricação de munição e de armamento (inclusive na construção de tanques e aviões), bem como, muitas delas foram motoristas de ambulâncias (inclusive a atual Rainha Elizabeth, quando ainda jovem, na sua bombardeada Londres). 
O início da década de 1950, veio encontrar a cidade de Caicó, no Rio Grande do Norte, com todas as carências pertinentes àquela época: ausência de energia elétrica (somente à noite), distante da capital, estradas deficientes (carroçáveis) e o pior, sem chances de empregos e rendas para ambos os sexos. Aqueles duros dias vieram encontrar uma jovem, que na pia batismal recebeu o nome de Engrácia e que, posteriormente, passou a ser conhecida como “Engrácia de Badé” (em virtude do seu pai que era largamente conhecido como Badé). Sem recursos e com baixa escolaridade, mas com uma grande ânsia de encontrar um trabalho para sua sobrevivência, enquanto as demais garotas da sua cidade, também como um meio de automanutenção, aprendiam a costurar, bordar e tricotar, Engrácia de Badé, na contramão do feminismo, mas possivelmente  lembrando-se das mulheres europeias que “pegaram no pesado” na época da Segunda Guerra Mundial, resolveu ser soldadora, uma profissão que, por exigir força muscular, era essencialmente masculina. 
Ela montou uma pequena oficina de soldas, nos fundos do quintal da casa do seu pai, e foi à luta. Solteira, sem perder a vaidade, com suas mãos ainda sem calos, com um corpo pequeno e falsamente frágil, começou fazendo serviços de soldagens em pequenas peças (panelas e outros utensílios domésticos). 
Logo mostrou habilidade no que fazia e resolveu dar um salto maior e que, para aqueles árduos tempos, chocou a sociedade machista dos sertanejos de Caicó. Alugou um imóvel e montou a sua oficina, agora com especialização em consertos em radiadores de automóveis, inclusive veículos pesados (ônibus e caminhões). Faz-se necessário frisar que, através de contrato de prestação de serviços, era aquela exímia soldadora quem consertava os radiadores das inúmeras e pesadas viaturas (inclusive tratores) do 1º Batalhão de Engenharia e Construções, do Exército Brasileiro, sediado em Caicó.
E então, leitores? Podemos chamar isto de empoderamento? Na década de 1970, quando Engrácia de Badé já soldava radiadores de viaturas pesadas há muitos anos, começou a ser usado o termo “empoderamento”, que significa o processo pelo qual as mulheres ganham o poder interior para expressar e defender os seus direitos. Bem como, ampliar sua autoconfiança, fortalecer sua própria identidade, melhorar sua autoestima e, sobretudo, exercer o controle sobre suas relações pessoais, sociais e profissionais.
Para mim, quando Engrácia de Badé resolveu exercer uma árdua profissão, essencialmente masculina, tomou uma decisão e provocou uma mudança individual em sua jovem vida, que a tornou independente financeiramente e naturalmente “empoderada”.
Eu a conheci pessoalmente. Era para aquela profissional que o meu pai, Manoel de Neném, levava os radiadores pifados de seus veículos para consertos. Eu tive a felicidade de conhecer aquela mulher “empoderada”. Estive muitas vezes em sua oficina. Ela já na maturidade, com um corpo ainda rijo e forte e com suas mãos calejadas e sujas de óleo e graxa, trajando roupas femininas protegidas por aventais, ainda manejava pesados radiadores de automóveis com eficiência.
Hoje, as pessoas também gostam de dizer que Fulana e Beltrana são mulheres guerreiras.  E Engrácia era o quê?Na minha modesta opinião, Engrácia de Badé foi uma mulher avançada para o seu tempo, pois se tornou “empoderada” muitos anos antes da criação do termo que está tão em voga.
Salve Engrácia de Badé, nossa aguerrida conterrânea!

Escritor e colaborador do Bar de Ferreirinha

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