Páginas

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Diarreias mentais - CLXVI


Um judeu nordestino

Salomão Nutels deixou a sua mulher, que estava grávida, na Ucrânia e veio tentar a vida no Brasil. Seu intuito era, logo que pudesse, trazer a sua esposa, mas estourou a Primeira Guerra Mundial e eles perderam o contato. Sete longos anos depois, D. Bertha, a mulher de Salomão, veio ao encontro do marido, que vivia na cidade do Recife, e, finalmente, Noel conheceu o seu pai. 
Estabelecidos com um pequeno comércio, que faliu, Salomão/Bertha transformaram a casa em que moravam numa pensão. Logo, a pensão de Dona Bertha tornou-se muito conhecida e transformou-se num ponto de encontros de intelectuais em Recife.
Noel estudou na cidade de Garanhuns e, em 1936, graduou-se na Faculdade de Medicina do Recife. Os interesses do jovem médico voltaram-se para a saúde pública, especializando-se como sanitarista e tisiologista. A tuberculose era na época uma doença extremamente resistente e, assim como hoje, atingia com maior incidência as populações de baixa renda. 
Em 1938, um ano após obter a naturalidade brasileira, ingressou no serviço público, com a nomeação para o Instituto Experimental Agrícola de Botucatu, São Paulo. Em seguida, mudou-se para o Rio de Janeiro e, na Companhia de Saneamento da Baixada Fluminense, aperfeiçoou-se no combate à malária.
A partir da admissão como médico da Fundação Brasil Central, em 1943, e na participação da Expedição Roncador-Xingu (1946), ao lado dos Irmãos Villas-Boas, Noel Nutels tornou-se incansável amigo dos índios brasileiros, dedicando-se à preservação do patrimônio físico e cultural das populações indígenas. Como consequência, em toda a produção acadêmico-científica do sanitarista, encontra-se uma constante preocupação com a saúde do índio, especialmente no campo da tisiologia
Em 1952, Noel Nutels elaborou o “Plano para uma campanha de defesa do índio brasileiro contra a tuberculose” e, em 1961, publicou o “Cadastro tuberculínico na área indígena”. Como reconhecimento acadêmico, participou dos Congressos Brasileiros de Tuberculose e Doenças Respiratórias entre 1951 e 1972 e, em 1963, do Congresso Internacional de Tuberculose, em Roma.
Hoje, Noel Nutels, pela meritória obra que executou, é nome de laboratório na Fundação Oswaldo Cruz, importante instituição localizada no Rio de Janeiro (RJ). Não obstante o seu rico currículo, pouca gente conhece o seu brilhante trabalho. Contam que, certa feita um repórter perguntou a um biólogo que trabalhava no Laboratório Noel Nutels se ele sabia quem foi Noel.
– Claro – respondeu o rapaz. 
– Foi um sambista – e já foi logo cantarolando:
“Seu garçom / Faça o favor de me trazer depressa / Uma boa média que não seja requentada”.
Trazendo na memória as marcas das dificuldades que viveu na sua juventude em Pernambuco, já formado em Medicina, um dia ele escreveu: 
“Não sou mais judeu russo. Sou é mulato sarará e dos bons. Cabeça chata, cabra safado. E aqui estou eu, brasileirinho da silva, nordestino de papo amarelo. Com meu canudo de doutor, minhas marquinhas de sífilis, aspirante a um emprego público, falando (mal) do governo”.
E foi cuidando de pobres e de índios que Noel Nutels conheceu, em muitas ocasiões, o descaso com que os governantes brasileiros tratam as causas sociais. 
E ele descarregou todo o seu descontentamento quando, em plena ditadura militar, às vésperas da morte num Hospital do Exército Brasileiro no Rio de Janeiro, ele acordou com vários militares graduados em torno do seu leito:
– Como vai, Doutor Noel? – indagou um dos oficiais.
– Como o Brasil! – respondeu ele.
E explicou:
– Na merda e cercado por generais!

Ciduca Barros é escritor e colaborador do Bar de Ferreirinha

Nenhum comentário:

Postar um comentário