Foto: Heraldo Palmeira |
Heraldo Palmeira
É noite de São João
Quase amanhecendo o dia
É madrugada e não vem
Quem tanto eu queria
A velha canção junina me veio à cabeça. Em pouco tempo estava me deliciando com a versão original do Trio Nordestino, gravada em 1971. Sim, quando eu não era nada mais do que um menino do interior, mal chegado à capital, sentindo minhas primeiras saudades do que seria passado para sempre.
Por coincidência, recebi um mesmo post de diversos amigos, com uma sequência de gravuras lindas relacionadas às festividades nordestinas de junho, são João do carneirinho dando logo o tom, e uma criança cantando delicadamente outra canção daquele amor inocente, sertanejo, que desmantelava o coração da gente.
Olha pro céu, meu amor
Vê como ele está lindo
Olha pr’aquele balão multicor
Como no céu vai sumindo
Foi numa noite igual a esta
Que tu me deste o teu coração
O céu estava assim, em festa
Pois era noite de são João
Havia balões no ar
Xote, baião no salão
E no terreiro o teu olhar
Que incendiou meu coração
Versos simples que estavam no meu inconsciente, guardados há tanto tempo! Algo que vem da infância, pode ser sentido a vida inteira, é dito em palavras, sons e silêncios. Coisas de junho, mês de devoção a Antônio, João e Pedro, os santos doces da festa – nomes de tantos brasileiros –, padrinhos da nossa fé enfeitada de tradição.
Tradição que rezava necessário, para qualquer tempo, chegar em casa alheia se fazendo anunciar pelo prefixo sertanejo “Louvado seja Nosso Senhor J’sus Cristo” e ouvir lá de dentro “Para sempre seja Deus louvado” como reposta acolhedora que abria as portas.
É um júbilo inigualável viver o mês em que o Nordeste explode em cores, as bandeirinhas e fitinhas de todas elas, o xadrez puxado no vermelho e azul das roupas, o amarelo do milho nas comidas, o ouro do fogo das fogueiras, o escarlate das brasas ardentes, o cinza esbranquiçado do que sobrou da lenha queimada, os foguetões, os folguedos, as cantigas, o quentão do vinho... Só fica sem cor quem quer.
Um tempo onde a fumaça e a poeira ficam siamesas, subindo da lenha queimando e do arrasta-pé do forró. Reinado do trio famoso que junta o resfolego da sanfona, o batuque da baqueta e da vareta da zabumba e o tingolingo do triângulo até o sol raiar. Só não sente saudade quem não viveu, atrás do sanfoneiro só não vai quem já morreu.
Bastava a gente ouvir “anavantu” e “anarriê”, que pareciam palavras mágicas, para iniciar a dança da quadrilha. E íamos todos deslizando aos comandos de “balancê”, changê”, “xis de damas”, “xis de cavalheiros”, “caminho da roça”...
– Olha a cobra!
– Uuuuiiii!
– É mentira!
– Aaaahhhh!
– Olha a chuva!
– Uuuuiiii!
– Já passou!
– Aaaahhhh!
– A ponte quebrou!
– Ôôôô!
– Já consertou!
– Aaaahhhh!
A noiva grávida, de véu e grinalda, o noivo apavorado com a valentia do pai da moça bulida, o casamento à força, o padre aflito para terminar logo a cerimônia, a polícia na beira do altar, tudo para honrar a desonra do bucho pela boca.
Esse mundo regional fantástico foi levado ao mundo nacional por um negro bonito, forte, galante, gutural, que saiu de casa (em busca do mundo) homem feito, depois de levar uma surra da mãe exatamente porque se aproximou de moça de família cuja família não queria aquele namoro.
Ele pobre, negro, analfabeto, tocador de festa. Ela estudante, branca, de posses. Apaixonada, se entregou aos encantos do cabra, desabrochou mulher. E o pai valente pretendia matar o enxerido que desonrou a filha, uma tragédia anunciada que seria riscada a faca ou bala numa feira de sábado. Episódio que deixou mágoa profunda e longa no rapagote rejeitado e humilhado.
Aquilo não era uma dança de quadrilha. Era um pedaço bem real do começo da história de Luiz Gonzaga do Nascimento, filho de mestre Januário dos oito baixos e de dona Santana, de Pernambuco, cabra macho chegado ao mundo numa sexta-feira 13 de dezembro, dia de Santa Luzia.
Reza a lenda que o nome Luiz era homenagem à santa, Gonzaga a são Luiz Gonzaga e Nascimento ao mês de dezembro do nascimento de Jesus. Não há dúvida, o menino já nasceu recomendado e bem batizado no palco do céu.
Luiz Gonzaga que viu os gaúchos de boleadeiras, bombacha, facão e chapelão e teve certeza de que também podia. Meteu-se em gibão e chapéu de couro, fez-se vaqueiro, armado de sanfona e voz poderosas.
Gonzagão, Rei do Baião, cara de Lua, lua cheia, luar do sertão. Sem favor, o mais completo retrato da cultura nordestina e um dos mais importantes da nossa música popular.
Luiz que só voltou ao seu chão depois de dezesseis anos, querendo apagar a mágoa de amor e da surra. E atendendo ao desejo obstinado de dona Santana de ver outra vez o filho querido. Que foi logo ouvindo “respeita Januário!”. O forrobodó foi tão grande que se alastrou por doze dias. Correu pelos tabuleiros a notícia de que cinco mulheres se ocuparam em fazer comida para o povaréu.
Seu Lua, luz do sertão, cantarino que falava do seu povo, de Zé Buraco, Chico Manco, Pé-de-Foice, Mané Ciço, Peba Macho, Bode Branco, Zé de Bahia, Joaquim, Janjão, Ansermo, Zé Tatu, Capitão Barbino, Bastião, Véi Jacó... Maria Doida, Raqué, Sinhá, Joana, Iaiá, Margarida, Bastiana, Florisbela, Gerolina, Zefa, Tota, Toinha, Zabé, Karolina com K, Juvita, Samarica Parteira – entre um menino e outro, dos outros, botava banca nos forrós para vender “cerrejinha” escumando de quente à cabroeira.
Luiz Gonzaga, que fez da asa branca a imagem do espírito divino da sua liturgia musical. E de Asa branca o hino do Nordeste. Que sofreu chacota do grupo de Canhoto logo depois da gravação original – os músicos acharam que era um hino religioso e saíram andando pelas dependências do estúdio da RCA Victor com um pires, pedindo esmolas. Que viu seu hino de louvor ganhar o mundo, e já se vão umas quase quinhentas gravações diferentes.
Até mesmo a asa branca
Bateu asas do sertão
Entonce, eu disse, “adeus, Rosinha!”
Guarda contigo meu coração
Quando o verde dos teus olhos
Se espalhar na plantação
Eu te asseguro, não chore não, viu
Que eu voltarei, viu
Meu coração
Liturgia de uma religião que gerou discípulos beatificados nas escrituras sagradas das partituras: Humberto Teixeira, Zé Dantas, Jackson do Pandeiro, Sivuca, Abdias, Genaro, Zé Calixto, Luizinho Calixto, Oswaldinho, Chiquinho do Acordeom, João do Vale, Dominguinhos, Anastácia, Marinês, Elino Julião, Trio Nordestino, Genival Lacerda, Luiz Vieira, Quinteto Violado, Banda de Pau e Corda, Flávio José, Santanna, Gilberto Gil, Xangai, Cátia de França, Nando Cordel, Fagner, Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Zé Ramalho, Elba Ramalho...
Essa gente sempre soube que “de Taboca a Rancharia, de Salgueiro a Bodocó, Januário é o maior” e ainda botou no mundo um maioral, o Rei do Baião!
Ah, o tempo passando! E inventaram de modernizar tudo isso. Coisa besta, a festa ficou feia. É sempre assim quando os sabidos resolvem mexer na simplicidade dos sábios, reinventar a roda. O erro crasso de quem não distingue simples de simplório.
Trocaram a música orgânica que corria nas veias dos trios pé de serra (sanfona, zabumba e triângulo) por essas porcarias que se intitulam “bandas”, com teclados fingindo sanfonas, com baticuns digitais, que inundam e infernizam a civilidade em rádios, tevês, palcos, paredões de som e festas privadas.
Trocaram a deliciosa picardia brejeira do duplo sentido das letras pela pornografia vulgar, piorada por um machismo ordinário e desrespeitoso das letras analfabetas.
Músicos e cantores originais, intuitivos, tradutores quase ontológicos do linguajar e dos costumes populares foram sendo esvaziados para dar lugar a celebridades de ocasião – uma gente cafona e sem talento, vaqueiros de butique, cantores gasguitas com faringite sempre entrincheirados em toneladas de equipamentos e sem qualquer conexão com a verdadeira arte popular.
“Vamo nessa, galera”, “levanta a mãozinha” e “sai do chão” tiraram do mapa a beleza matuta de “anavantu”, “anarriê”, “arrocha o nó”, que nunca eram ditos aos berros, eram apenas cincerros de égua madrinha para animar o mote e guiar o rebanho feliz pelo terreiro da alegria.
Seu Luiz tomou outro pássaro para escrever um réquiem que, de tão bonito, deixa até a morte em vida bonita na língua do nosso sanfonado de junho.
Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do assum preto
Pra ele assim, ai, cantá mió
Assum preto, o meu cantar
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus
Ele cortou chão a mais não poder, cantou com minha voz e a de todo mundo, tocou sua “eguinha” branca famosa, “só de baixo cento e vinte, botão preto bem juntinho, como nêgo empareado”. Ele pintou meu orgulho nordestino no coração e na estrada que traço, fazendo o rastro da passada virar rota para voltar, um dia, mesmo tendo que sair de novo.
Ele olhou para o céu dos pássaros e viu “passo voando pra todo lugar”. Tirou de lá o branco da esperança e o preto da tristeza para deixar Asa branca e Assum preto como abertura e encerramento de um espetáculo de vida como outro não se tem notícia.
Eu tive a glória de ver e ouvir Seu Luiz diversas vezes ali na minha frente. Não tinha pra ninguém! E não terá, como Pelé no futebol. Pior para os “joões” de Garrincha, essa cabroeira que anda por aí desenfeitando o arraial porque entrou pela saída.
Aquela sanfona branca
Aquele chapéu de couro
É quem meu povo proclama
Luiz Gonzaga é de ouro
Aquele tom nordestino
É cantador do sertão
É filho de Januário
É festa, é povo, Luiz alegria
Luiz Gonzaga é poesia
Que Antônio, João e Pedro cuidem dessas almas penadas e gritem em seus ouvidos moucos o prefixo que vem “derna” de 1912: “Viva Luiz Gonzaga!”.
E para quem quiser, basta seguir o conselho do grupo Bendegó na música Rancheira: “Se o forró já começou, bote o disco de Luiz”. Amém, meu santo!
Trechos de:
É madrugada (Antônio Barros)
Olha pro céu (Luiz Gonzaga-José Fernandes)
Asa branca (Luiz Gonzaga-Humberto Teixeira)
Respeita Januário (Luiz Gonzaga-Humberto Teixeira)
Assum preto (Luiz Gonzaga-Humberto Teixeira)
Feira de mangaio (Sivuca-Glorinha Gadelha)
Sanfona branca (Benito Di Paula)
Heraldo Palmeira é escritor, documentarista, produtor cultural e colaborador do Bar de Ferreirinha
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