Gravura: Ana Nunes |
Heraldo Palmeira
Fiquei impressionado quando vi tanta gente (até da imprensa) ridicularizando a futura ministra de Estado da Mulher, da Família e Direitos Humanos, depois que ela corajosamente contou sua história de abusos na infância e revelou que subia numa goiabeira para buscar refúgio emocional, para conversar com Jesus, a quem tomou como amigo.
Eu era alegre como um rio
Um bicho, um bando de pardais
Como um galo, quando havia
Quando havia galos, noites e quintais
Mas veio o tempo negro
E, à força, fez comigo
O mal que a força sempre faz
Mas não sou mudo
Hoje eu canto muito mais
Para mim, foi incompreensível compreender como tantas pessoas – inclusive mulheres – conseguiram tripudiar de uma vítima de abuso. Não devem ter capacidade de entender a crueldade do que fizeram. Pior, por partidarismo político-ideológico dos mais rudimentares!
E, claro, no escárnio que essas pessoas explodiram pelas redes sociais, também embutiram seu preconceito contra os evangélicos – cristãos como eu, católico que me acostumei desde cedo, pelo que aprendi em casa, a respeitar tudo quanto fosse divergente: posições econômico-sociais, cores de pele, religiões, opções pessoais de vida...
Agora, quase no acender das luzes do Natal, leio a notícia de que a futura ministra recebeu representantes de diversas entidades da comunidade gay. Um gesto claro de harmonia, acolhimento, convivência cristã, fé no futuro, na comunhão de ideias e esforços para a construção de caminhos comuns e positivos.
O presidente de uma delas declarou que aquela foi uma “reunião histórica”, no que parece ser a abertura de uma porta de diálogo desarmado do discurso isolacionista que se estabeleceu ao longo dos anos.
Um discurso surrado que pregou separatismos, como se, obrigatoriamente, pessoas tivessem de ser acomodadas em guetos e submetidas a tutelas ideológicas que nada de novo produziram ao longo do tempo. Afinal, segundo estudos citados pelas próprias entidades, nada menos do que 60% dos homossexuais já pensaram em suicídio e obviamente suas motivações não apareceram nos últimos meses, vem de cicatrizes antigas.
O mesmo cidadão que considerou a reunião histórica, arrematou com uma frase que soa forte: “Essas pessoas estão no pé de goiaba, assim como um dia a ministra esteve”.
Que essa frase forte inspire a nossa capacidade de sentir compaixão de quem sofre dores que a vida nos poupou e dores que causamos. Que nos inspire a conviver em harmonia com quem fala uma linguagem diferente, mas que tem tanto valor quanto a nossa forma metida a besta de falar. Que inspire esforços contra as desigualdades e a favor da paz coletiva.
Que essa frase forte nos coloque diante do espelho e nos mostre o quanto somos ridículos quando insistimos em achincalhar os que julgamos inferiores – ridículos que somos ao pensar que temos alguma superioridade e que nos cabe ganhar sempre um jogo que, na verdade, nem sabemos para que serve ganhar.
É Natal de novo, tempo em que caprichamos nas palavras doces, bonitas, escolhidas quase sempre para cumprir um ritual. Que tal abrir o dicionário e falar com sentimento de irmandade e com riqueza de detalhes, entendendo que nem tudo é sim? Sim, porque há o não, tão forte e sonoro quanto.
Sim, há o oposto que também tem direito de estar posto à mesa da Santa Ceia que montamos em mesas fartas, porque gostamos de comer e de beber e só queremos uma boa desculpa – tanto é verdade que a tradição cristã realça apenas uma ceia na vida de Cristo, a da Paixão, mas nós corremos para inventar a do Natal.
Pois bem, que tal incluir nos nossos mimos de Natal o acolhimento do outro, mesmo que seja oposto? Acolher de verdade, de coração sentido para dar sentido ao sentido da festa.
Se temos fé o suficiente para festejar o nascimento do Menino Jesus, não cai bem duvidar que Ele, feito Cristo, pode ir a um pé de goiaba consolar a dor de alguém. É uma questão de fé de quem tem, que só diz respeito ao dono da fé e ao Senhor da fé.
Eu prefiro ficar por aqui, na festa que me reanima desde criança. Sem levar em conta posições econômico-sociais, cores de pele, religiões, opções pessoais de vida, qualidade dos ingredientes à mesa... O que importa de verdade não é celebrar?
Pouco me importa que o Jesus de cada um vá onde eles bem entenderem. O meu, levo onde meu coração imperfeito for. E Ele estará lá, como sempre esteve. É apenas uma questão de fé na barca da vida.
Velejar, velejei
No mar do Senhor
Lá eu vi a fé e a paixão
Lá eu vi a agonia
Da barca dos homens
Boas festas, preparando um ano-novo dos bons! E que a gente não estrague tudo.
*Trechos de:
Galos, noites e quintais (Belchior)
Paixão e fé (Tavinho Moura-Fernando Brant)
HP é documentarista, produtor cultural e colaborador do
Bar de Ferreirinha
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