Foto: Thinkstock/Veja |
Heraldo Palmeira
Eu estava num local que não faz parte do meu trajeto tradicional. Precisava entregar uns documentos numa agência bancária e cheguei pouco depois das dez da manhã. Como o banco só abriria as portas às onze, tratei de tomar um café por ali mesmo.
O homem negro, pobre, roupas surradas se aproximou do balcão. Parou no fundo, do meu lado esquerdo. Com certo constrangimento, colocou uma moeda de um real no tampo de azulejo branco, impecavelmente limpo, e murmurou alguma coisa incompreensível para o balconista – que já conhecia de sobra o freguês e o pedido. Ao mesmo tempo do murmúrio, o homem também levantou o polegar, complementando sua comunicação particular.
Em seguida, se aproximou mais de mim trazendo junto um odor menos pior do que eu imaginava. Pensei que me abordaria, talvez para pedir dinheiro ou outra coisa qualquer. Mas ele apenas passou por trás e caminhou na direção do balconista, do outro lado do estabelecimento.
Nesses botecos simples o serviço de bar tem lugar certo no balcão, acompanhando a arrumação das garrafas e copos lá atrás. O balconista colocou um copo grande de plástico sobre o azulejo impecavelmente limpo e tascou cachaça até o meio. O homem pediu limão. Não tinha, o caminhão da entrega estava atrasado. Ele pareceu desapontado e saiu apressado pela outra porta, copo à mão. E circundou o bar por fora.
Eu não o perdi de vista. Ele parou mais adiante, na beira da calçada e, de uma lapada só, tragou toda a bebida. Não pingou um pingo. Não esboçou qualquer careta. Apenas meneou a cabeça levemente para baixo, como se mirasse o chão, e ficou teso como num transe, como quem recebe um santo, contraído e imóvel.
Parei de comer por uma eternidade que deve ter durado dez segundos. O homem levantou a cabeça, altivo. Respirou fundo, recuperou os movimentos, e eles vieram ampliados. Pisou o asfalto quente – estava descalço –, andou na direção de uma daquelas caçambas de entulho e jogou dentro o copo vazio. Olhou ao redor com ar de responsabilidade e apanhou alguns pedaços de papel picado que estavam por ali. Depois atirou dentro da caçamba. Atravessou a rua e sumiu sem cambalear dos meus olhos.
Voltei ao meu lanche. O balconista olhou para mim e permanecemos em silêncio reverente àquele sobrevivente. Não ousamos qualquer gracejo. Terminei minha pequena refeição, paguei menos de cinco reais e tomei meu rumo.
Documentos entregues no banco, entrei no carro e fui embora pensando naquele homem e sua chamada de cana tomada de uma talagada só. Fiquei com a certeza de que aquela cerimônia era tradicional, diária, com hora marcada. Um rio de mágoas que ele canalizava para a alma todos os dias, numa correnteza devastadora de álcool, sua forma homeopática de ir deixando a vida.
Heraldo Palmeira é escritor, documentarista, produtor cultural e colaborador do Bar de Ferreirinha
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