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segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Retalhos coloridos

Foto: Reprodução
Heraldo Palmeira

Nos reunimos sem motivo definido, apenas pelo prazer de estarmos juntos naquela noite pós-Carnaval. A sala ampla, arejada e acolhedora cumpria o seu melhor e costumeiro papel: abrigar uma boa roda de conversas para cada um relembrar momentos marcantes. Ao redor de comida e bebida das boas, parecíamos alfaiates juntando retalhos da vida para vestir nossas almas.

Vivemos a juventude em outra época, todos livres e viciados em traquinagens e afetos – deve ser por isso que nossa geração tem como característica manter tantos amigos pela vida inteira.

Os mais jovens da sala, nossos filhos e sobrinhos, estavam incrédulos diante dos relatos das reprimendas pesadas que nossos pais aplicavam – os mesmos velhinhos fofinhos que eles convivem hoje no chamego de netos e avós. Palmadas, castigos e surras eram parte do cotidiano, na medida exata das molecagens que produzíamos. Mas sobrevivemos sem traumas e nos descobrimos agradecidos e apaixonados por aquelas figuras aparentemente severas demais, que nos ensinaram a ser quem somos.

Alguém lembrou a história de uma tia que, com a paciência esgotada pela arenga interminável – que começou na hora do almoço – entre um casal de filhos, deu uma surra em ambos, obrigou-os a ficar abraçados de rostos colados, e amarrou-os (abraçados) com uma corda de sisal pela tarde inteira “para recuperarem a amizade de irmãos”. Os irmãos, hoje cinquentões, lembram daquela tarde com carinho e riem juntos com a mãe noventona, tratada como rainha por todos nós da família.

Outro lembrou do dia em que subiu no telhado, destelhou boa parte da casa e foi para a escola. A mãe, depois de providenciar o reparo, foi dormir o sagrado sono da tarde, mas deixou recomendado que fosse acordada assim que o traquinas pisasse em casa. Dito e feito, aplicou-lhe uma surra memorável e voltou tranquilamente ao quarto para completar a sesta interrompida. Filho cinquentão e mãe setentona vivem grudados desde sempre, num amor interminável. O velho pai, também famoso pelo rigor de outrora, acompanha tudo com o sorriso escancarado e o ar de quem acertou nas doses.

Outra falou de Mariquita, a escova de lustrar sapatos, madeira de um lado e cerdas do outro, que seus pais ampliaram o uso para palmatória. Quando havia traquinagem pendente, o filho a ser punido recebia a missão de ir buscar a danada para a expiação da falta cometida.

Uma das jovens ficou curiosa: “E se você se recusasse a ir buscar?”. A narradora foi didática: “A quantidade de palmadas aumentaria! Para que piorar o que já estava ruim?”. Hoje, ela cinquentona e os pais oitentões, ao lado dos outros filhos (quarentões em diante) que foram acarinhados por Mariquita seguem firmes rindo de suas ótimas histórias e as reuniões familiares são esplendorosas.

Os meninos e meninas da sala pareciam perceber que nós nos divertíamos bem mais quando passamos pela idade deles. Não tínhamos tecnologia nenhuma, dessas de hoje que entregam tudo pronto, mas éramos imbatíveis para imaginar e executar traquinagens e desvendar grandes segredos da vida.

A estrutura social da época se montava com laços entre famílias que, mesmo sem parentesco, iam se aparentando a partir das amizades entre pais e pais, filhos e filhos. Eram tempos bem diferentes, com poucas facilidades modernas, onde os vínculos afetivos moldavam nossas vidas.

A maioria da população vivia em pobreza digna, o que gerava uma espécie de linguagem comum para todos seguirem avançando porque as lutas eram muito similares. Vivíamos cercados de histórias extraordinárias e comoventes de superação. O anfitrião daquela noite memorável lembrou de uma delas, vivenciada por um velho amigo.

Certa noite, o rapaz foi com a mãe ao teatro assistir a um show de um cantor famoso que ela gostava muito. Casa cheia, show transcorrendo, o filho foi ao banheiro.

Quando voltou, já fazia parte de uma cena inesquecível: Benito di Paula resolveu descer à plateia e sentou na única poltrona vazia, ao lado da velha senhora. A mágica se fez quando delicadamente cantaram em dueto.

A plateia emocionada cantou junto cada palavra de Retalhos de cetim, com o facho de luz transferindo para aquelas duas poltronas um pedacinho do céu da história daquela mulher.

Na cabeça do filho paralisado pela emoção, passou cada segundo da história da sua vida e a saudade do pai falecido, que, homem de luta, construiu a casa da família tijolo a tijolo nos restos de tarde depois do trabalho diário, e nos finais de semana.

O filho também lembrou do momento de decisão familiar: ou continuavam a pagar o aluguel de onde viviam e paralisavam a construção, ou mudavam para a obra em andamento. A velha senhora de agora, que ali flutuava nas nuvens da música cantando com seu ídolo, bancou o sonho do marido.

Nos primeiros tempos, ainda inacabada, a casa não tinha portas, apenas retalhos para garantir um mínimo de privacidade aos moradores. À noite, o gigante amoroso vestido de chefe de família dormia seu sono aos pedaços, do lado de fora, para velar o sono tranquilo daquela senhora e dos seus filhos, espalhados em colchões pelo chão.

As lágrimas desceram sem contenção lavando a saudade do pai, que pegava sempre o violão e repetia apaixonado aquela mesma Retalhos de cetim como hino oficial do amor de vida inteira que viveu com a esposa. Por certo a mágica do destino preparou aquele dueto acompanhado com plateia enorme, deixando no ar a suspeita de que o céu também mexeu alguns pauzinhos.

Ouvimos o relato do anfitrião com os olhos marejados na sala ampla, arejada e acolhedora. Éramos alfaiates juntando retalhos coloridos das nossas vidas, para vestir nossas almas e morrer de saudade no desfile do tempo.

Cada um de nós naquela sala, navegantes do tempo, gastou tudo em fantasia. Era tudo o que a gente queria e a vida jurou desfilar. E desfilou.

Curta aqui uma bela versão de Retalhos de cetim:

(*) Dedicado às encantadoras histórias de vida que acontecem todos os dias.

HP é documentarista, produtor cultural e colaborador do 
Bar de Ferreirinha

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