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terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Conversa fiada

Quem ouve nalguma mesa alguém falando a respeito da última que presta?
Pra que falar de filmes, livros, discos – tem quem nem saiba o que danado é isso,
se estiver fora das hérnias! Pinturas e esculturas é querer demais,
quase ofender (Ryan McVay/Photodisc/Getty Images/VEJA)
Heraldo Palmeira

Os bares estão repletos. Infelizes! Ninguém conversa mais como antigamente. Saudade, eu? Nostalgia? Nada, tristeza apenas. Afinal, chegamos ao ponto de escrever para perguntar se podemos ligar, pois nos entrincheiramos atrás de pequenos textos para nos proteger da fala. E, como, cada vez menos, compreendemos a linguagem escrita, o que será daqui a pouco?
Quem ouve nalguma mesa alguém falando a respeito da última que presta? Pra que falar de filmes, livros, discos – tem quem nem saiba o que danado é isso, se estiver fora das hérnias! Pinturas e esculturas é querer demais, quase ofender.
De repente, Chico Buarque lança disco novo. Vá lá, meio cambeta diante de frutos mais antigos, mas um alento mesmo assim. Em poucas horas, os discípulos do maldito evangelho do politicamente correto inventaram uma discussão fora do tom do álbum, feita sob medida para quem perdeu qualquer medida e o senso de ridículo.
Mal Os Tribalistas desembarcam de novo pelo porto do rio adjacente do que sobrou da cultura musical e já sapecam a pergunta idiota fundamental: “Por que passaram 15 anos mudos?”. Como se ficar calado fosse proibido e o manancial obrigatório!
Quem se preocupa com as quatro estações ou sabe que existem, complexas como o ciclo feminino? E que ninguém ouse botar a lua e o ciclo das marés no meio da prosa. É quase desatino pensar que alguém pensa nisso nos bares infelizes da vida. E misturar ciclos pode ser desastroso para essas mentes cada vez mais monofásicas.
A quem diabos interessa a beleza das flores, que quase pedem desculpas pelos cantinhos que ainda ocupam fora das floriculturas? Daqui a pouco, nem elas saberão a hora que a natureza vai murchar, cair, semear e renascer para dar frutos. Afinal, estão aí as polpas congeladas e, não demora, serão sintetizadas.
Estamos sendo treinados para falar somente das últimas besteiras, tão bestas quanto nós nos tornamos. Há lugar nobre para as maledicências, insolvências, penitências de quem abriu mão do belo por menor que fosse em favor do feio generalizado cada vez mais maior.
Claro, tudo deve correr pelas redes sociais. Por favor! Não invente esse negócio chatérrimo de conversar ou telefonar. Escreva. Tudo abreviado. Melhor ainda se conseguir traduzir tudo para emoticons.
Puxa vida, é difícil para esses muderninhos se relacionarem com quem não domina a comunicação paralinguística – termo solene de banca de mestrado, né não?
Se ligue, aprenda a rezar pela doutrina do Vale do Silício ou não será ninguém, seu analógico de merda! Tá bom, mande um áudio. Mas resuma tudo a nove segundos. Afinal, existem essas regrinhas, como a dos cento e quarenta caracteres, ora!
Aprenda a falar da internet das coisas, não importa que coisas sejam essas e que ninguém saiba explicar. Tem também a realidade aumentada, que é muito bom para impressionar. Aliás, os apóstolos do mundo digital não têm qualquer problema em viajar na maionese.
E quando a coisa aperta, começam a usar termos técnicos estrangeiros, que não fazem a menor ideia do que significam. Sim, exatamente aquilo que conhecemos há séculos como “rota de fuga”.
Você ainda não sabe o que é indústria 4.0? Santo Deus! Ninguém pode morrer sem essa informação. Se você está no Brasil, sossegue. Aqui, nosso parque industrial está quase todo na fase 1.0, pegando no tranco. E provavelmente a gente morra antes de discutir o quarto estágio.
A indústria… a indústria de tudo! Há! Impiedosa, sem tons flexíveis, só ângulos retos. Só interessa o muito, pouco é igual a nada, que só serve a nenhuns.
A indústria… refém da escala, do tudo ou nada. A indústria… que inventou o entretenimento para substituir a cultura e matar o fio da meada das coisas, amarelar o retrato da origem, trocar o saber pela decoreba.
A indústria das máquinas para fazer o difícil ou repetitivo e tornar o aprendizado um caminhante obsoleto para a morte. Ah, os tempos das artes e ofícios! Deixa pra lá, não tente explicar o que isso significa. É semear no deserto.
Aridez! Quentura sem o contraponto do inverno. Oxalá as impressoras 3D, metidas a cavalo do cão, aprendam a fazer chover. É só o que falta. Talvez, se estiverem associadas à internet das coisas…
Vamos sobrando, do jeito que dá, trilhando uma trilhinha de nada, na maior cautela para não cair no buraco com fome de tragar tudo.
É por isso que morro de medo de poeira cósmica, do tal do ano-luz que me faz ver, vivinha da silva, uma estrela que já morreu há bilhões de anos – que diabo de conta é essa? E olhe que nem bebi ainda!
Um mestre querido me ensinou que um pensador italiano disse, certa feita, que haverá no futuro algumas ausências muito importantes (na falta que farão) para o homem. O silêncio e a escuridão são duas delas.
Compreendo perfeitamente, sei que não é brincadeira. Acho que o pior de envelhecer é envelhecer neste tempo horroroso que parece já estar morto por falta das coisas mais banais, que eram ótimas. Um tempo que parece se matar a cada dia. Iluminado demais e aos gritos.
A indústria do amanhã encheu o mundo de barulhos e de luzes acesas o tempo inteiro. A madrugada está cheia de vozes, carros e motos roncando a plenos pulmões, garrafas tilintando, palavrões embriagados, músicas ruins. Até o ruído poderoso do caminhão do lixo em dueto com os gritos dos garis, formando a suíte do amanhecer mais limpo. E nada disso acontece no escuro.
Lembro dos tempos do meu pai, em que os homens tinham suas lanternas a pilha como acessório, para iluminar, quando não era noite de lua, o chão que acolheria o passo a passo da caminhada.
Tempos em que era quase música o chiado do movimento dos pés sobre a terra nua com pedrinhas, que empoeirava sapatos para serem engraxados em casa.
Tempos em que a gente se divertia aprendendo a chamar aquelas lanternas de flashlight, e enchia o peito de orgulho quando nos era confiada a nobre tarefa de alumiar o chão. Conversa fiada. Tempos idos, nada mais!

Documentarista e produtor cultural, colaborador do Bar de Ferreirinha

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