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segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Boniteza da feiura

Heraldo Palmeira

Deixei o hotel em Belo Horizonte numa manhã bonita, de clima ameno. Era preciso vencer o trânsito sempre caótico da capital mineira, até subir a pirambeira do Belvedere para ganhar as pistas amplas e razoavelmente vazias da BR-040, sentido Rio de Janeiro. A mesma rodovia que, nos tempos em que se chamava BR-3, era extremamente perigosa e ficou famosa pela canção homônima, sucesso nacional na voz e no gingado Black Power do ator Tony Tornado – “A gente corre e a gente morre na BR-3...”.

Em pouco mais de vinte minutos, eu já rodava pela estreita e arriscada rodovia vicinal batizada com pompa como Estrada Real. É uma pena que um caminho cercado de História por todos os lados esteja tomado por caminhões transportadores de minério, conduzidos por motoristas perigosamente apressados. Repleta de curvas, com poucos locais para ultrapassagens seguras, a velha estrada não suporta o fluxo imposto por esses tempos modernos que misturam turismo e negócios internacionais – que deveria caber à ferrovia suportar, mas essa é outra história.

Ouro Preto se apresentou no horizonte e, em pouco tempo, eu estava no ponto de parada de todos os turistas que chegam a uma das nossas cidades históricas mais emblemáticas. Foi um reencontro que me emocionou, passados algo como vinte anos da minha última visita.

Não demorou muito para que minhas retinas registrassem imagens desoladoras.

A nuvem de poluição gerada pelas empresas mineradoras que cavucam tudo ao redor.

A invasão de carros encobrindo a visão das fachadas preciosas do conjunto arquitetônico.

A quantidade de flanelinhas disfarçados de informantes turísticos, agressivos, vestidos em seus coletes representativos de um falso poder autoimposto e agindo como verdadeiros donos do local.

A conivência dos policiais sempre prontos a reprimir quem tentasse parar mais carros nas redondezas – dentre eles, alguns que demonstravam não resistir a dois minutos de conversa ao pé do ouvido. Tantas feiuras!

Fora do centro histórico, vi repetido em Ouro Preto o mesmo fenômeno que contamina qualquer cidade brasileira: a pobreza da arquitetura contemporânea, que traduz uma ocupação desordenada e sufocante, estropia a imagem urbana e devasta nossas geografias regionais com um tipo de construção onipresente: malfeita, muito feia, de linhas retas, boa parte sem reboco ou pintura e com janelas de alumínio frágeis e tortas, preenchidas quase sempre por acrílico ondulado e ordinário, ora transparente, quase sempre opaco.

Incontáveis obras realizadas sem qualquer rigor técnico ou fiscalização, do jeito que é possível aos bolsos dos proprietários, penduradas quase por milagre na topografia.

Esses pensamentos me entretiveram enquanto segui vencendo mais curvas fastidiosas e faixas amarelas contínuas que pareciam não ter fim. Pelo caminho, passaram alguns carros da FIAT fazendo testes de estrada antes de chegarem ao mercado, mal disfarçados por uma pintura quadriculada em preto e branco. Seguiram velozes, certamente acima do limite permitido, e sumiram logo dos retrovisores. Os caminhões foram rareando à medida que me aproximei da primeira capital das Minas Gerais.

Mariana ofereceu seu conjunto arquitetônico imponente e também fundamental para a nossa memória, exalando um ar mais sossegado se comparada a Ouro Preto. Parecia estar voltada para sua própria população. Parecia melhor tratada do que a vizinha ilustre. Circulei em paz pelas ruas e apreciei a deliciosa preguiça de uma legítima cidade do interior.

Andar sem compromisso naquelas ruelas de casas muito bem cuidadas me ajudou a compreender a afirmação da atriz Fernanda Montenegro, de que o interior mineiro é a melhor tradução do interior do Brasil. E senti aquela vontade de dizer “se eu pudesse, eu viria morar aqui”, que a gente sente sempre que se encanta com algum lugar.

Quase hora do almoço, cruzei com um mundaréu de adolescentes saindo do colégio. A rua estreita se enfeitou pelo mar de uniformes em azul e branco, que desciam pela ladeira invadindo os paralelepípedos porque a calçada era insuficiente. Uma meninada feliz, bem diferente dessa adolescência estressada das grandes cidades, que “conquistou” o direito de trocar o emblemático uniforme escolar por caríssimos molambos de grife.

O ambiente do restaurante repetia o recanto tranquilo da rua, debruçado sobre uma praça linda e repleta de jardins e sossego, espécie de antessala para os sabores que estavam por vir à mesa. Praça que tinha numa das quinas um raríssimo cinema de rua, com aquele encanto brejeiro jamais encontrado nessas salas múltiplas, tecnológicas e impessoais instaladas em shoppings. Tantas bonitezas!

Segui até Viçosa, para uma longa tarde de trabalho. A cidade, famosa pelo ambiente universitário, revelou-se nervosa, com um movimento de carros e pessoas pelas ruas que nunca imaginei encontrar por lá.

Com a noite querendo avançar, chegou a hora de retornar ao ponto de partida. Resolvi dormir em Ouro Preto para diminuir o tamanho da viagem até Belo Horizonte. Aceitei a indicação do hotel Mirante, um lugar aconchegante, bonito e bem cuidado. 

Por azar, naquela noite, apesar das altas horas, um grupo de hóspedes entregou-se a grande algazarra pelos corredores. Esvaziaram algumas garrafas da legítima cachaça mineira, fizeram gemer o assoalho de madeira, bateram portas com força. Um desconforto extra que não mereceu qualquer atitude dos funcionários, apesar das inúmeras ligações de hóspedes, que chegaram à recepção.

Segundo confidenciou um hóspede tradicional com quem tomei o desjejum, quem precisasse do serviço de despertador do hotel muito cedo deveria ter cuidado. O recepcionista costumava dormir além do normal e perder ele mesmo a hora que era sua. Portanto, a prudência recomendava manter à mão a garantia do despertador do celular.

Depois do belo café colonial, voltei para a estrada sem fotos internas das igrejas históricas. Estavam proibidas, numa tentativa de impedir a ação de olheiros do patrimônio histórico alheio, que engordam o lucrativo negócio de arte sacra roubada.

Só resta confiar na memória para não esquecer tanta belezura. Afinal, é por ali onde maria-fumaça não canta mais. Onde mora o cálix bento e a hóstia consagrada! Lugar de saudades coloniais, de moças bonitas, flores nas janelas e quintais. Ponta de areia. Ponto final.

Heraldo Palmeira é escritor, documentarista, produtor cultural e colaborador do Bar de Ferreirinha

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