Foto: Heudes Regis/VEJA |
Heraldo Palmeira
A noite de início de primavera trazia os primeiros sinais da temporada de calor. A padaria de bairro – que a cidade gigante aprendeu a chamar de padoca – reencontrava os fregueses de todas as noites. Brincávamos entre nós, jogando no ar boas pilhérias amparadas em algumas características individuais, micos antigos, o de sempre. Qualquer motivo dando motivo.
Nenhum item do cardápio é tão saboroso quanto provocar os meninos atrás do balcão, jogar uns contra os outros, tirar onda! E falar das últimas e das penúltimas, ainda mais quando é noite de futebol ou seguinte à rodada dos diversos campeonatos.
Aí, brilha a verdadeira enciclopédia ambulante, um freguês que sabe tudo de números, resultados, prognósticos, nomes, análises, dados que vão surgindo enfeitados por aquele sotaque italiano radical de origem, cantado, belíssimo, Moóca legítimo.
Ali trabalha uma gente raçuda, que mora longe, que pega ônibus, que leva hora e meia e beira a madrugada para chegar em casa. Mas que não verga, volta no dia seguinte, alegria em punho, fraternidade na ponta da língua, bem-querer do melhor que existe.
Uma gente justa, com visão de mundo e práticas cotidianas que nos obrigam a seguir acreditando nessa tal de gente. Uma gente que vive o que faz porque faz pra valer, se gratifica na satisfação do cliente, tem orgulho de estar na boa luta.
Têm plena consciência de que preparam comidas deliciosas, tudo que sai da cozinha é ótimo. E, de sobremesa, criaram a receita de um adorável local de trabalho.
Uma gente que não esquece o que você gosta e capricha no preparo, mas sugere experimentar outras coisas, cuida dos que fazem dieta – impedem refrigerantes, açúcar, sal e o escambau. E que ouve sugestões e chama a patroa para ouvir também, sem medo de dizer que concorda com o freguês. Não raro, mandando um sonoro “Tá vendo, eu não disse?” glorioso, de peito estufado!
Rabada com agrião deverá entrar no cardápio em breve. Votação unânime e rápida, encerrada minutos depois da sugestão, sem recursos e discursos intermináveis. Afinal, ali, o único supremo que se leva em conta é o de frango. O resto é piada.
A patroa, entre tantos afazeres, quer aprender a guiar moto e comprar uma. O filho desfila a belíssima Harley tinindo de nova, mas está desestimulando a mãe. Tem medo por ela, que anda animada com uma Triumph que sugeri, e vai tocando a vida com o sonho viajando na garupa.
Depois de um dia de trabalho, difícil pensar em ir para casa sem passar por lá, nem que seja para dar uma sacaneadinha básica na chatice da vida.
Gosto de ficar num canto de parede, colado no balcão, sentado confortavelmente. Posso ler as notícias do dia no celular, saber das novidades da região, prosear enquanto preparam meu pedido, tirar dúvidas de última hora – “posso colocar balsâmico na salada? Tempero logo aqui? Cebola crua ou refogada, doutor?” – tirar onda com o amigo que tenta arrumar namorada usando aplicativo...
Nada melhor do que ouvi-los ralhando com o garçom matreiro que não tira o sorriso do canto da boca e dos olhos, que não para de lançar iscas para a fuleiragem começar. Ou continuar. Claro, eles sempre me pedindo opiniões cavilosas para provocar, para engrossar o caldo.
Uma gente que erra seu pedido – peixe ao invés do frango grelhado escolhido – e, com charme irresistível, diz que se desentendeu com o colega na hora da transmissão digital do pedido. Um jeito maravilhoso de não haver culpados, pois ali é um lugar do prazer da boa convivência. Para completar, o sem-vergonha ainda faz uma defesa firme das qualidades do pescado, ômega 3 e tal... E arremata para o gol: “Amanhã pode vir comer seu frango que eu faço no capricho”. Game over!
É claro que a algazarra é robusta, falamos alto, ainda mais quando tiramos sarro de uma das balconistas, que adora – de pura safadeza – jogar água na direção dos nossos pés quando chega a hora de lavar o chão para fechar a casa. “Bora, que eu moro longe!”.
Mas, naquela noite de início de primavera, uma voz soou mais alto. O homem dirigiu-se quase ameaçador à mulher, na mesa ao lado.
– Dá pra você deixar essa porra de telefone de lado?
– Mas eu preciso só dar uma olhada, porque o pessoal está terminando...
– Deixe o pessoal pra lá. Será possível?! A gente saiu com o nosso filho para ficar juntos, conversar, curtir em família. E você tem que ficar mexendo nessa porra?
O filho, um pós-bebê que ainda cambaleava testando os primeiros passos e não tinha se iniciado nas falas, começou a demonstrar aflição com a discussão dos pais. Impotente, sem saber como mandá-los parar, jogou o cardápio no meio do salão.
Retrato destes tempos de relações que começam, crescem e morrem pelas (e até por causa) redes sociais, ali estava um extrato do exagero digital, essa doença que avança silenciosa, covarde, cruel, criando viciados em fumaça, glutões desse éter que alimenta o individualismo, a ilusão, a solidão, a depressão e a negação do que não pode ser negado: o homem é um ser social e não um conjunto de bits que deve viver conectado feito um hardware periférico num mundo virtual.
O silêncio na padoca era gritante naquele momento, como na hora da cobrança de um pênalti. O garçom matreiro, aquele do sorriso no canto da boca e dos olhos, foi rápido no lance e fez sua jogada de craque para virar o jogo:
– Pode deixar que o tio pega. O que você escolheu, menino lindo?
Um dos rapazes do balcão relançou em campo, de primeira sem segunda, a ladainha do gol de mão da rodada anterior, que manteve o líder no topo da tabela. Eu não deixei quicar, de bate-pronto evoquei a inspiração no velho malandro Maradona e la mano de Dios.
Um senhor, na ponta-esquerda, lá perto da saída, recebeu meu passe, matou no peito e evocou o carioca Mário Vianna – o velho juiz que virou comentarista de rádio e que cravou o bordão “La mano, eu disse la mano”, quando algum espertalhão metia a mão na bola.
Soou o apito, o jogo parou, o casal baixou sua própria bola depois que a mulher aquiesceu, abandonou o celular, reconheceu que pisou na bola, pediu desculpas ao homem e fez um afago no pequenino falando palavras carinhosas, de mãe.
Depois do pênalti, o pai, nos desvãos da atenção da mãe ocupada na fila do caixa, se derretia para uma moça linda, encantada com a graça do pirralho.
Em pouco tempo, o menino estava orbitando no melhor espírito da nossa padoca, correndo pelo salão, distribuindo a todos um sorriso tão franco, que merecia nunca ter um celular precoce para fazer logoff do mundo analógico.
Ele continuava mais do que autorizado a correr pelo campo inteiro, rindo para todos. E ninguém ousaria marcar impedimento àquela felicidade pura. Afinal, ele já estava conectado com a alegria que a gente cultiva ali, noite a noite, com força, seja qual for a estação do ano, haja calor ou frio.
Aos amigos de uma padoca das Perdizes.
Documentarista, produtor cultural e colaborador do
Bar de Ferreirinha
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