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Heraldo Palmeira
Saí da garagem do prédio do escritório e tomei o asfalto. Para variar, o trânsito estava ruim, como todos os dias. Paciência! Era melhor não ter pressa, para poder chegar em paz em casa. Segui naquele cortejo que encurrala a vida. Não havia o que fazer além de ligar o rádio do carro.
Fiquei pensando que nunca me separei do menino que vive em mim desde a infância. Tenho com ele uma convivência pacífica. Evito que sua inocência sofra com as dores da vida adulta, para que não perca a pureza de que precisamos lançar mão em alguns momentos. E sempre fico a sós com ele se preciso de ajuda, porque fala coisas que não sei dizer, enxerga saídas que não encontro.
Talvez seja difícil acreditar, mas é esse menino interior que me ajuda a manter a serenidade e a firmeza em situações incomuns. Talvez por que ele seja um sonhador, um sujeitinho de bem com a vida que deu de enxergar sempre um passo adiante. E cada vez mais confio nele, inclusive meus segredos – até aqueles que eu gostaria de esquecer.
Havia uma multidão diante da matriz da minha cidadezinha. Era festa da padroeira, missa campal de encerramento, gente vinda de várias cidades, das redondezas e mais alhures – tem quem calcule vinte mil pessoas todos os anos, naquele dia.
De repente, um menino raquítico, assustado rompeu a área reservada, subiu em desespero a escadaria central do átrio, chorando aos gritos e foi direto na direção do bispo que presidia a celebração. Mas driblou o sacerdote e seus auxiliares, e seguiu para dentro da matriz vazia.
Agi por impulso e fui atrás. Ele procurava a mãe. Descalço, sujo, cansado, apavorado. Estendi os braços e ele veio sem titubear.
Comecei a falar baixinho no ouvido dele, palavras de acalmar. Foi se deixando aceitar naquela nova situação, só queria amparo. Eu, homenzarrão, querendo chorar minha paternidade revivida naquela criaturinha. E ele me apertava com carinho, confiante, seguro. Passo seguinte, deitou a cabecinha no meu ombro, entregue, calmo.
Saímos da matriz assim, direto no altar solene daquela festa. Percebi que todos os olhares nos acompanharam, enquanto fomos para a lateral conversando ao pé do ouvido. De imediato, principalmente as mulheres me cercaram prontas para ajudar – o sentido de maternidade é algo fantástico!
Todos tentávamos arrancar do menino alguma informação que pudesse nos ajudar a encontrar seus familiares. E ele permanecia agarrado ao meu pescoço recusando qualquer outro braço que se apresentou.
Um dos coroinhas me avisou que na base da escadaria central, diante do altar, havia uma moça se dizendo tia do menino. Lá fomos nós conversando, mas ele recusou os braços que ela estendeu. Disse baixinho no meu ouvido que não queria ir e pareceu sentir medo.
Fui tomado pelo dilema de entregar uma criança desconhecida a outra desconhecida. E voltamos para o ponto anterior, cercados pelas mulheres aflitas. Corria a missa e logo eu teria funções na liturgia, na hora de conduzir com a equipe o andor com a imagem da padroeira para dentro da matriz.
Começamos a cogitar chamar as autoridades, até que alguém deu uma pista, o menino era de uma família de moradores de um sítio perto da cidade. E a moça voltou, desta vez trazendo uns chinelos na mão. Eu perguntei ao menino se eram dele, confirmou balançando a cabeça. Desci-o para o chão, os calçados serviram perfeitamente, como revivendo o conto de Cinderela no masculino e em pleno sertão do Nordeste.
Ele já estava mais calmo, aceitou ir com a moça. Ela nos explicou quem era a mãe e todos nos lembramos de tê-la visto por ali, momentos antes de a celebração começar. Quando tudo parecia bem, chegou a hora de nos despedir. O menino ergueu os bracinhos, queria meu colo, recusava ir embora. Como não me curvei para pegá-lo, agarrou-se à minha perna, irredutível.
Tomei-o novamente nos braços, saímos do assédio das pessoas e conversamos um pouco. Falei palavras brandas – acho que ele nunca ouviu isso de nenhum homem da família, muito menos de alguém do meu tamanho, de uma voz grave. Parou de soluçar e prometeu que iria com a tia, mas combinamos nos reencontrar dali a um ano, novamente na festa da padroeira. Ele apenas concordava com movimentos de cabeça, incapaz de entender o hiato do tempo.
Voltei à realidade engarrafada pela fuligem dos automóveis quando o locutor anunciou três tempos dos Secos & Molhados, retirados daquele disco lendário com as cabeças servidas de bandeja na capa.
Leve, como leve pluma
Muito leve, leve pousa
Na simples e suave coisa
Suave coisa nenhuma
Que em mim amadurece
Não sei se o menino vai lembrar do nosso compromisso, mas estarei lá conforme combinado. E meu braço, envelhecido mais um ano, ainda parecerá firme para ele.
Andei mais um pouco quase sem sair do lugar, ilhado naquele mar de carros na região de hospitais e cemitérios, estranha e premonitória conexão da metrópole nos dois lados da grande avenida. Como se ao destino bastasse apenas atravessar a rua para estar finado. E as rosas já estavam ali mesmo, entupindo barracas, fingindo enfeitar o cortejo urbano.
Dois semáforos adiante, um rapazola magérrimo perambulava entre os carros. Tinha um sorriso e uma esperança incompatíveis com aquela realidade. Arrisquei abrir o vidro e assumi os riscos, e em pouco tempo ele desistiu de tentar outros carros. Ficamos conversando, meu corpo dividido entre o ar refrigerado vindo pelo lado direito e o calor poeirento entrando da rua pelo lado esquerdo.
Seguimos ele e eu, esforço mínimo sobre o asfalto. Passo a passo (para ele) e metro a metro (para mim) – o conforto do câmbio automático, apenas pisar e soltar levemente o pedal do freio. Um leve chuvisco, mas ele quis seguir, os respingos molhando seu corpo e o meu braço. Fiquei pensando se deveria convidá-lo a entrar para seguirmos a prosa, mas confesso que aquela foi uma das primeiras vezes que fiquei sem resposta para uma dúvida. Até o meu menino da infância se absteve de opinar.
O rapazola me disse que tinha sido expulso de casa quando resolveu assumir sua homossexualidade. O masculino do pai ameaçou de morte, o feminino da mãe esvaiu-se em pranto. Ela morreu pouco depois, ele acha que de desgosto pela separação forçada. Era filho único. Perdeu a escola cara. Caiu nas ruas. Sem destino, sem sentido. Sem medo porque não havia mais o que perder. Espaço vazio para qualquer temor.
O chuvisco parou. Eu tentei chorar apenas com o olho direito, para não ser visto em lágrimas. Pendi um pouco a cabeça para o lado direito, como se a lei da gravidade pudesse ajudar ali. Ele tentou com o esquerdo, pois caminhava lado a lado, com a mão posta sobre a porta do carro como quem sonha lançar âncora. Resolvemos liberar os olhos centrais, o meu esquerdo, o direito dele. Fazia mais sentido. Chorar pleno às vezes faz bem.
Eu não sei dizer
Nada por dizer
Então eu escuto
Se você disser
Tudo o que quiser
Então eu escuto
Fala
Se eu não entender
Não vou responder
Então eu escuto
Eu só vou falar
Na hora de falar
Então eu escuto
Fala
Ouvimos a música em silêncio. “Eu adoro esses caras, eram de outro planeta” – ele disse ao fim, com autoridade. Apenas balancei a cabeça, concordando.
Eu ia dobrar à direita no próximo semáforo, na esquina final do cemitério, ficar livre daquele cortejo quase fúnebre. Dei a ele um dinheiro maior para ajudar, sem atribuir valor. Não tinha preço aqueles minutos em que dividimos o mesmo mundo. Nos despedimos ali, com um aperto de mão firme, prometendo outra conversa qualquer dia naquele engarrafamento eterno.
Fiquei olhando-o ir embora, cada vez menor no retrovisor. Acionei o vidro elétrico e fechei meu mundo novamente. Olhei aquele painel enorme, couro e madeira gritando que nada tem valor absoluto. Tudo tão claro, um desânimo, uma carga de interrogações.
É claro que eu não poderia ignorar minha história, mas gostaria de saber porque fui eu quem achou o caminho para estar dentro do carro e agora me sentir absolutamente incapaz de fazer algo melhor.
A avenida que tomei estava calma ladeira abaixo, poucos carros, sem ninguém nas calçadas escuras. Um mendigo juntava porcarias pelo chão, um cachorro lúdico abanava o rabo para ele. O encontro quase suicida de quem não tem para onde ir e faz da rua um destino, e acha os seus que não são de ninguém. E seguem porque o jeito é seguir. E seguimos pois não há outro jeito de escapar.
A voz do locutor avisou que os três tempos estavam chegando ao fim e anunciou a última música.
Pensem nas crianças mudas, telepáticas
Pensem nas meninas cegas, inexatas
Pensem nas mulheres, rotas alteradas
Pensem nas feridas como rosas cálidas
Mas, oh! Não se esqueçam da rosa, da rosa
Sem cor, sem perfume, sem rosa
Sem nada
Pensei no menino em meu colo seguro. Pensei no rapazola pouco mais que um menino que já não cabia nos meus braços inseguros. Pensei no mendigo e seu cachorro fuçando porcarias que talvez eu mesmo tenha jogado pela janela. Pensei em mim incapaz de fazer algo melhor do que dirigir, ouvir e calar. Sem coragem para desligar o ar-condicionado e abrir os vidros em busca de ar. Sem nada para dizer. Sem ninguém para me escutar. Sem rosa. Sem nada!
Comecei a contar os minutos para chegar em casa e ficar a sós com o meu menino da infância. Tínhamos muito o que conversar.
Trechos de:
Amor (João Apolinário-João Ricardo)
Fala (João Ricardo-Luli)
Rosa de Hiroshima (Gerson Conrad-Vinícius de Moraes)
HP é documentarista, produtor cultural e colaborador do
Bar de Ferreirinha
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