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segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Urbanidades

Foto: Christopher Furlong (Getty Images/VEJA)
Heraldo Palmeira

Passava das duas da tarde quando entrei no ambiente sempre fervilhante do sujinho para almoçar. Só mesmo a cena paulistana pode produzir um lugar daqueles, indispensável e firmemente instalado há tantos anos a poucos metros da esquina famosa de Paulista com Augusta.

Comida honesta e atendimento correto garantem que tudo sempre dá certo por ali. Domínios de Raimundo, o garçom cearense que me cobre de mesuras, como faz com seus clientes esses anos todos. Sentei mais longe da chapa de frituras instalada no fundo e mais perto da porta. Pedi meu tradicional filé com arroz branco, alface e tomate, e me entretive com o pão francês, azeite honesto e sal de entrada.

A moça estava de costas para mim num plano mais alto, sentada ao redor do balcão principal. Ficava por isso avantajada e desigual em relação ao meu ponto de vista. O velho  All Star chamou minha atenção, acho que pela cor marrom em veludo côtelé. Gasto, bem gasto, restando um vago vestígio daquela parte saliente de borracha no contorno do calcanhar onde fica impressa a marca.

Aquele par de tênis era bandeira de estilo, pensei. Uma tiara de malha fina contornava o louro dos cabelos bem cuidados – cortados pouco acima dos ombros –, num marrom predominante entre verdes, vermelhos e azuis de vários tons, com laço na nuca, de onde pendiam duas tiras até o meio das costas.

A blusa branca colada ao corpo não escondia o cume de uma tatuagem de flor abaixo do ombro esquerdo. Imaginei pétalas ladeira abaixo, num chão macio enfeitado pelas sardas que dominavam a cena nua entre o pescoço e o tecido branco.

Ao lado da mão direita o copo cheio de gelo, sem limão, e a lata de Coca-Cola Zero traduziam a falsa impressão de que estamos nos cuidando ao escolher esses refrigerantes light de mentirinha, tão cobertos de produtos nocivos à saúde que fingimos buscar.

A poucos centímetros de mim, um pouco da calcinha aparecia sobre a cintura baixa do jeans. Cor da pele – tropeço de estilo para o meu gosto; e daí?

Agucei minha curiosidade a respeito do rosto da moça. Havia um espelho na parede do outro lado, mas eu estava muito abaixo do nível do balcão. Ela continuava uma completa estranha para mim.

Em razão do movimento dos semáforos da Paulista, faróis na língua particularíssima da cidade, o trecho da pista estava vazio naquele momento. Raimundo trouxe minha comida no exato instante em que uma grande freada, queimando pneus, estrondeou ao redor.

Um grito – “Otário!” – parado no ar, sem resposta, fez o português se encolher para um lado no cubículo do caixa tentando enxergar a possível desgraça através do buraquinho de passar pagamentos e trocos. Semáforos abertos, de novo o mar de carros congestionou a pista.

A multidão continuou sua sina de ir e vir pela calçada, operária do formigueiro urbano. Dois homens conversavam de pé na mesa ao lado e um deles saiu correndo: “Tchau, Alê. O táxi chegou”. Alê nem teve tempo de dizer palavra. Pagou a conta e sumiu na direção contrária.

Terminei de almoçar, lancei o guardanapo sobre a mesa e me levantei devagar. Finalmente o espelho do outro lado me mostrou o rosto da moça que eu quase tocava as costas por causa do corredor apertado. Ela nem me viu, continuou olhando para o próprio prato sobre o balcão. Rosto bonito, guardando marcas da vida. Devia ter uns quarenta.

Entrei na pequena fila do caixa, duas pessoas na frente. Percebi um olhar na minha direção. Vinha do outro lado do balcão, outra moça. Blusa de crepe de seda finíssima, marrom. Casaquinho cinza claro e leve. Olhos azuis muito claros, rosto encantador demonstrando cansaço e certo ar de impaciência. Loura. Linda. Muito jovem. Aproveitei aqueles três segundos de felicidade que ela me concedeu. Desviou o olhar e não me buscou mais. Sofri com o abandono. Mantive a fleuma, não podia ser diferente.

O português me entregou o troco com aquela desatenção automática. Ignorei o velho homem. As duas louras me ignoraram também. Acenei para o Raimundo. “Até a próxima”, ele disse. Aquiesci levantando o polegar.

Segui pela calçada apinhada até o shopping que liga Paulista, Augusta e Luís Coelho. Reafirmei compromisso com a loteria acumulada que insiste em me ignorar, e me permiti o grande prazer de um cafezinho no Starbucks, sentado num sofá confortável dentro da loja. Ao lado, duas adolescentes tiravam algum assunto a limpo com acusações mútuas, impaciência realimentada, contradições. Em comum, as vozes estridentes e a grosseria de encher o ambiente com algo absolutamente sem importância para o resto do mundo.

A escada rolante me jogou de volta à calçada da Paulista e mais adiante entrei numa banca de jornal. Comprei Tristessa, do beat Jack Kerouac, e Paraísos artificiais, do poeta Charles Baudelaire, nessas ótimas edições em pocket books que levam a boa literatura a todos os bolsos.

Atravessei a rua e entrei no meu hotel. No elevador, apertei o 16, que era o meu andar. Pensei na história desse Kerouac algo autobiográfico, estruturada a partir da sua paixão por uma índia prostituta chamada Esperanza, de vida miserável.

Depois viajei para a Paris dos meados do século 19, tempo em que Baudelaire vivia no Pimodan, vivenciava suas experiências com ópio e haxixe e freqüentava o Club des Hachichins, instalado no próprio hotel e reduto da intelectualidade francesa da época.

Hotel cuja reputação Baudelaire ajudou a moldar ao lado de Alexandre Dumas e Eugene Delacroix, também assíduos das instalações na exclusiva Île Saint-Louis, nos arredores da Notre-Dame.

A mesma Saint-Louis do quarto distrito parisiense, onde hoje se pode cruzar na rua com a divinal moradora Catherine Deneuve. Mais uma mulher loura e linda que decidi esquecer naquele dia.

Documentarista, produtor cultural e colaborador do 
Bar de Ferreirinha

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