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segunda-feira, 2 de julho de 2018

Quase crianças

A festa de Babette (imagem Nordisk Film)
Heraldo Palmeira

Era mais um aniversário, quase encostando nos sessenta. Bem vividos, podia afirmar. Percalços, dores, dissabores? Claro! Quem passou sem eles? Afinal, trata-se da velha e boa vida, cheia de altos e baixos. E planos.

No final da tarde, amigas recentes enviaram um bolo delicado e delicioso. Enorme surpresa. Sinal de que os afetos ainda valem a pena, estão vagando por aí prontos para serem capturados e cultivados para amanhã e depois de amanhã.

O restaurante (que vive cheio) ainda não estava cheio, era cedo da noite. A amizade com os da casa garantiu a reserva dos quatorze lugares com aquela meia hora a mais do horário limite, para ajuste do relógio biológico aos sabores que viriam a seguir.

O aniversariante chegou antes da hora para evitar contratempos. Trazendo a tiracolo os joelhos avariados pelos esportes de impacto na juventude, a novíssima dor no ombro, os quilos a mais adquiridos por anos a fio de vida sedentária, que estão diminuindo por esforço próprio – “é preciso melhorar as taxas”, disse-lhe o médico amigo, como um professor cobrando melhores notas na matéria.

E daí para esses acessórios do tempo? Estava feliz porque foi sendo feliz aos poucos ao longo da vida – por sorte e pelo esforço próprio de sempre buscar as contingências certas, o que realmente importa.

Os da família, pequena, chegaram em seguida. O grupo foi se formando devagar, a maioria em casais. Eram todos velhos amigos, o grisalho ou branco nas cabeças dava a pista do tempo de convivência. Um ou outro que não era da confraria pelo menos sabia dos outros. Exceção às três moças, ligadas ao grupo e ao aniversariante por vínculos familiares. Elas quiseram vir de bom grado, talvez prevendo que iriam se divertir muito.

Os presentes certeiros trouxeram a delicadeza do bem-querer dentro das embalagens.

Havia muitos conhecidos de todos em outras mesas, a cidade ainda mantém essa característica, quase todos conhecem quase todos. Razão para muitos cumprimentos, reencontros, conversas rápidas, folias.

Sem combinar nada, não beberam álcool. Preferiram água, água de coco, sucos e refrigerantes. De repente, iniciaram uma deliciosa brincadeira – puxada pelo aniversariante – de mudarem de cadeiras de quando em vez. Um jeito de todos ficarem perto de todos, fazer a conversa rodar na mesa enorme e não ficar presa em subgrupos.

E riram e riram e riram, como há muito não faziam. Com gosto, sem censura, sem se preocupar com nada ao redor. Quase crianças. E encheram aquele salão com tanta alegria...

E o aniversariante disse que não precisavam mais cantar o “Parabéns...” exclusivo do grupo, pois outros cinco aniversariantes fizeram antes a velha canção soar a plenos pulmões. E ele, moleque, agradecia a cada cantoria alheia. “Assim já é demais, cantaram uma vez e teve bis, tris e quadris! E mais uma quinta Não vamos precisar de mais uma!”. 

No meio da algazarra, soava de mansinho a trilha sonora espetacular da casa, em seu equipamento perfeito – de longe, o melhor da cidade. A música sempre teve grande importância na vida daquele grupo, alguns deles envolvidos com a cena cultural desde que o rock era um rapazinho rebelde e o pop era um menino. E, por coincidência, ali na mesa estavam os dois responsáveis por aquele projeto de sonorização do restaurante.

É como um sol de verão
Queimando no peito
Nasce um novo desejo
Em meu coração
É uma nova canção
Rolando no vento

O tempo lá fora parecia ter parado um pouquinho para que aquele tempo ao redor da mesa passasse mais devagar. Não dizem que a felicidade é a soma de momentos felizes?

O mar bem mais adiante não era visível dali, mas estava lá abaixo com o vento de uma nova canção, com a lua e estrela fazendo poesia no céu, com o sol guardado para o dia seguinte.

– Quero saber como será quando os pratos chegarem. Quando fizemos o pedido, eu estava acolá, na ala do camarão do chefe. E agora já estou sentado quase do outro lado, na cauda do peixe. Será que eu consigo, pelo menos, um frango do lado de cá? – preocupou-se o professor gaiato, que havia lecionado para meio mundo que estava no restaurante.

– É verdade que você já dava aula de química aos índios quando os portugueses chegaram? – e seguia o rodízio de lugares e gracejos.

– Estou com vontade de ir ao banheiro, mas tenho medo de sair e perder meu lugar – disse, agarrada à bolsa, a mulher que já havia rodado meia mesa e conseguira sentar outra vez ao lado do marido. Gargalhada geral.

– Se eu fosse você, esperava até os pratos estarem servidos, é mais seguro – respondeu um prudente sentado à frente.

Mais uma pérola da trilha sonora e o aniversariante olhou com ternura para seus amigos, tentando rever todos num tempo de antes, quando eram jovens.

Você lembra
Lembra daquele tempo
Eu tinha estrelas nos olhos
Um jeito de herói
Era mais forte e veloz
Que qualquer mocinho de cowboy
Você lembra
Lembra, eu costumava andar
Bem mais de mil léguas
Água da fonte
Cansei de beber
Pra não envelhecer
Como quisesse
Roubar da manhã
Um lindo pôr de sol

Olhou para as três pouco mais que meninas, tão lindas, guardiãs da juventude, que não faziam a menor ideia do que é envelhecer. E nem precisavam mesmo, teriam tempo de sobra para essa aventura. Até porque a velhice não é dada a espalhafatos, vem chegando silenciosamente, não se percebe sua instalação, apenas que está instalada.

Olhou para a mulher que refletia seus olhos. Era bom rejuvenescer.

Os sabores da cozinha famosa desfilaram absolutos, naquela certeza de que são o que sempre foram e continuarão sendo. Ao fim, chegaram os garçons na farra boa, o pequeno bolo, a música repetida pela sexta vez entre palmas. E todos os gracejos cabíveis.

Vela soprada, apagada. E ninguém estava interessado em ir embora. E foram ficando mais um pouco, avançando sobre a hora de fechar as portas do lugar. E começaram a se levantar e a prolongar as conversas, de pé. E foram se despedindo e convocando novos encontros para o mais breve. E foram saindo para as separações adiadas até o limite, cada um voltando para sua própria vida, o tempo retomando seu rodar inclemente.

O aniversariante viu seus amigos indo embora, sozinho no silêncio da falta de risos, caminhando até o carro. Não quis pensar no tempo, a idade ensina que é preciso otimizar esse item precioso. Não quis sentir saudade, estava mais interessado em apostar nas alegrias.

Pensou nas urgências sem sentido da juventude e na liberdade que chega com o envelhecimento. Pensou no movimento dos afetos, os que se perderam pelo caminho e os que chegaram inesperados.

O salão vazio, lá dentro, quase às escuras, contraponto à claridade do poste de iluminação da rua. As marcas do rosto refletidas na vidraça lateral do restaurante. Profundas, superficiais, relevo irregular de uma vida.

Pensou na glória de ser imperfeito, no desejo de ganhar asas. Ainda escapava pelas frestas da porta a trilha sonora.

O poder que nos levanta
A força que nos faz cair
Qual de nós ainda não sabe
Não há pedra em teu caminho
Não há ondas no teu mar
Não há vento ou tempestade
Que te impeçam de voar


Trechos de:
Canção de verão (Luiz Guedes-Thomas Roth)
Sapato velho (Mú Carvalho-Cláudio Nucci-Paulinho Tapajós)
Dona (Gutemberg Guarabyra-Renato Sá).

Documentarista, produtor cultural e colaborador do Bar de Ferreirinha

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