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segunda-feira, 21 de maio de 2018

O sol de Edilene

Foto: Piscina (Tatiana Cunha/Arquivo pessoal)
Heraldo Palmeira

O sol nasce para todos, principalmente nos janeiros e fevereiros do Nordeste. Num condomínio de veraneio de classe média, mar lá adiante, sentei à beira da piscina numa segunda-feira. Leitura e uísque à mão, em pouco tempo estava envolto pelos grupos sociais organizados com absoluta rigidez.

Meninos e meninas se separam rigorosamente pela idade e se mantêm distantes na hora de nadar e tomar sol. Se juntam de noite ao redor de mesas de conversa e jogos diversos – de sedução ou de pura infantilidade, dependendo da idade.

Os adolescentes são apenas adolescentes. As meninas, naturalmente mais emburradas nesta fase, enfrentando as armadilhas das primeiras TPMs, das inseguranças de praxe e mogangas resultantes de mimos exagerados recebidos de pais e avós. Os meninos, quase sempre bobalhões, preocupados com músculos e dimensões. Os elos comuns são a surpreendente ingestão de álcool, os smartphones e os aparelhos ortodônticos que – até isso! – eles conseguem personalizar.

Mais próximos do bar e a meio caminho da piscina, jovens casais na faixa dos trinta cuidam de filhos ainda muito pequenos, falam de viagens e grifes com deslumbramento quase matuto, contam suas vantagens e fazem planos que, fatalmente, um dia lá na frente, descobrirão distantes da realidade que resultará do passar dos anos.

Num canto, mulheres que passaram dos quarenta, oscilando entre os modelitos perua ou boneca velha. Biquínis extravagantes, maquiagem pesada, chapéus meio ridículos, óculos muito ridículos de tão grandes e cabelos alérgicos a água, unanimemente no modelo palha porque destruídos por rituais de tinturas e escovas que beiram a psicose.

Todas já passaram por procedimentos dermatológicos pesados ou pelo bisturi, pois envelhecer é verbo retirado do dicionário muito antes da última reforma ortográfica. As bocas de todas parecem picadas por abelhas da espécie botox. Reclamam da vida, de maridos e ex-maridos, de pensões insuficientes – mesmo que não se ocupem de nada –, do dinheiro que eles agora destinam a amantes e namoradas e a curtir a vida adoidado. E sentam o verbo nas desafetas ausentes.

Mais perto de mim, o grupo das senhoras que passaram dos sessenta. Falam muito baixo. Mas os risinhos nervosos parecem revirar o baú dos pecadilhos que cometeram nas penumbras das décadas de cinquenta e sessenta. Algo como requebrar os quadris às escondidas, guiadas por Bill Halley, Elvis e Beatles. Duvido que alguma delas tenha sido adepta dos Stones.

Em pouco tempo, o tema muda, as vozes ganham volume para tratar de um problema entre uma delas e a filha. Nesse momento, a decana do grupo posta-se como matriarca e dá a palavra final em absolutamente tudo. “Faça assim, faça assado”. Parece que não é permitido dizer nada além de amém. Tanto que ninguém ousa reclamar dos bobes solenemente instalados no cabelo da velha senhora que já namora os setenta.

No lado de lá da piscina, o grupo das ninfetas domina a cena. Todas se chamam Patrícia, Bruna, Silvia, Juliana, Cláudia, Giovana, Maria Isabel, Nathalia. Todas entre treze e quinze anos falando de futuro sob aquela óptica decorada nas salas dos colégios caros que frequentam. Todas valorizando as dietas alimentares que não apagam celulites e estrias – que elas nunca me ouçam! Todas interessadas em meninos batizados Felipe, João Henrique, Caio, Eduardo, Fernando, Diego, Carlos, Pedro. Todas falando de filhos com a estupidez natural da idade.

Uma delas, com ênfase, garante que sua filha vai tocar guitarra e as amiguinhas ficam deslumbradas. Quase peguei meu Moleskine para fazer anotações e marcar as datas de um encontro com o futuro, na estreia dessa Eric Clapton de saias que ninguém pode garantir que virá ao mundo. Nem cheguei a me mexer na cadeira porque lembrei de algo óbvio: se depender do gosto musical da jovem “mãe” e de toda sua geração, a guitarra não sairá da prateleira da loja. Ninguém precisa de guitarras de verdade em músicas que só falam de sofrência, chifre, rapariga e cachaça, com as respectivas suítes corno, raparigueiro e cachaceiro.

Súbito, os “avós” da guitarrista inaudita chegam com o “tio” da artista. O menino mal completou um ano de idade. Como a família tem posses, uma mulata pobre, a ninfeta mais linda de todas, faz o papel de babá. A sinhá branca, perua por excelência, é implacável com sua mucama moderna na distribuição de tarefas e no jeito de dar suas ordens.

O sinhô seu marido, depois de perguntar com desdém “Como é seu nome, mesmo?”, divide com quem está ao redor, ali na beira da piscina, a revelação de que sua mucama se chama Edilene. E lhe entrega o projeto de sinhozinho, “tio” da guitarrista que nascerá daqui a pelo menos dez anos.

A sinhá atravessa a lâmina d’água para encontrar seu grupo, aquele das mulheres apicultoras. Mantém um olho na colmeia e outro no ambiente, fiscalizando a distância regulamentar entre o sinhô e a mucama. Afinal, apesar da tatuagem que lhe confere um ar de modernidade retrô dentro do maiô, ela não tem qualquer chance diante do magnetismo, da plástica e dos cabelos maravilhosos da menina.

O sinhozinho-“tio” começa a berrar para entrar na piscina. A ninfeta mais linda de todas tira blusa e short e se apresenta num biquíni sumário. Amarelo. Contraste absoluto com sua pele. O pequenino é o último a se calar e por instantes eternos só se ouve o barulho da água batendo nas bordas da piscina. Aquele corpo escultural, chocolate, jambo, sei lá, soa como ofensa para todas as outras ninfetas, peruas, bonecas velhas e senhoras ocupadas em queimar seus couros ao sol.

Um dia, li em algum lugar uma explicação genial para a diferença entre ninfeta e lolita: a lolita é a ninfeta com plena consciência do poder que tem. Para felicidade geral daquela nação bronzeada, Edilene continuava ninfeta. Inocente da cabeça aos pés. Afundou num cantinho da piscina com o bebê da sinhá e sumiu na paisagem.

Na verdade, ela estava encantada com a conversa das ninfetas brancas. Todas meninas da sua idade e sem qualquer semelhança visível. Distantes um oceano da sua dura realidade, onde as amigas são Maria José, Das Graças, Das Dores, Da Luz, Biluca, Dalva, Judite, Ketyly, Dayanne, Suellen. Onde escola é ficção, comida é dúvida cotidiana e os meninos se chamam Chico, Zé, João, Manezim, Raimundo, Bastião, Máicon, Wanderley, Diolindo, Francinaldo. Meninos que nunca querem romance. E filhos podem reservar passagem para o mundo pouco depois da primeira menstruação.

Talvez Edilene acreditasse que nem tinha direito àquele sol que nascera para todos, poucas horas antes. O único para todos que ela conhece se escreve Paratodos, é jogo do bicho. Ali, no território das patricinhas, das sinhás brancas, das senhoras donas da verdade ninguém teve sequer a delicadeza de melhorar seu nome, de lhe chamar de Leninha. Seria perfeição demais para uma mucama, a mais linda de todas as ninfetas a um passo de virar lolita.

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