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domingo, 27 de maio de 2018

Inventos do Seridó

Igreja do Divino Espírito Santo, Ouro Branco-RN
Janduhi Medeiros

Quando menino, no Seridó, eu percebia a educação correr solidária, naturalmente, pelo cotidiano harmonioso da lousa do tempo, como a nuvem da janela que observava as tardes azuis do outono. Naquele tempo, toda comunidade tinha uma função espontânea e afeiçoada no processo edificante da convivência, seja pelo instinto secular do berço, seja pelo prazer das gerações na relação familiar, para erguer o grande templo da relação humana, influenciando, sobremaneira, o ensino do bem-estar social nos espaços públicos, nas salas de aulas e nos rigorosos hábitos familiares, sempre com a janela da educação aberta. 
Por exemplo, se meu pai estivesse conversando com um adulto, na sala ou na calçada, eu, na condição de menino, não podia passar entre eles, tinha que entrar pela porta lateral, pelo lado, ou esperar solenemente, sem oferecer qualquer sinal de descontentamento, até que a conversa terminasse. 
Era um mandamento trazido pelos antepassados que arquitetaram e habitaram aquela terra, plantado como atmosfera civilizatória nos códigos das primaveras, invernos e estiagens, para educar e disciplinar, como tudo, nas ribeiras arenosas do Seridó.   
Capacitação e conduta, produzidas juntas e misturadas no roçado da terra fraternal.
Na escola a gente ia crescendo e aprendendo a gostar de poesias, leituras e das merendas oferendadas, isto quando aparecia uma alma, com espírito público, comprometida com as raízes da educação. 
Nas feiras, complementando os ensinamentos formais, apreciávamos os repentistas e as músicas saborosas de Luiz Gonzaga, como alimento puro de uma cultura superior. Meu irmão mais velho lia bem e era o escolhido pra recitar os cordéis para meu pai, nas rodas de conversas. O velho ficava orgulhoso. 
Com isso, ele tinha algum privilégio, mas, também, não podia passar no meio das conversas entre adultos. Regra sagrada valia para todos os filhos e para qualquer menino no entorno do lar, e, tinha de ser cumprida com divindade, pois era uma norma de valor social venerada, fazia parte do alicerce da edificação humana no altar da região.
Certo dia, meu irmão, distraído, passou no meio de uma conversa. Levou uma pisa de fazer pena. Levei castigos por outras desobediências, mas, passar entre meu pai e outra pessoa, quando estavam conversando, nunca! O diabo era quem passava, ou melhor, Deus me livre! Jamais passei. Era um gesto sacro, divino, as conversas não podiam ser desrespeitadas, interrompidas. Meninos no Seridó, quando não laboravam pra ajudar os pais, só podiam brincar e estudar. Muitas das brincadeiras tinham que ser escondidas. Filmes de mulher nua, nem pensar, quando muito, uma revista, daquelas! Carão e castigo faziam parte da lista do cotidiano. Certa vez, cheguei atrasado para o almoço, recebi um castigo: ler uma história de um livro que apareceu lá em casa. Depois, eu tinha que contar essa história, bem direitinho, numa roda de conversas. Orilo Dantas sempre estava presente nessas conversas e gostava... E eu não achava nada engraçado. Eram os castigos pedagógicos das ribeiras do Seridó. 
Lá em casa sempre havia essas rodas de conversas, na sala ou na calçada. Muitas vezes faltavam tamboretes. Os mais frequentadores eram Orilo Dantas e Mané Bernardino, estes sempre declamavam trovas, muitas delas feitas na hora, de improviso, Chico de Marica, Tia Ana, Manoel Florentino, Chico Cachoeira, Tio Edmundo...
Doutor João Marinho, filho daquela redondeza, era juiz em Caicó, mas quando visitava Ouro Branco queria participar das rodas de conversas. Certamente para encontrar o sentimento de justiça perdido. Tio Esmerindo vinha de Jardim só pra prosear com os amigos. Os prosadores da cidade gostavam de Tio Esmerindo. Muitas vezes, a conversa girava de noite adentro, em busca das madrugadas. Os prosadores falavam de inverno, roça, algodão, de festa, juventude, café com sequilho e dos mistérios das serestas. Certa noite, Mané Bernardino desafiou Orilo Dantas a fazer uma trova sobre os tempos da mocidade. Orilo pensou, pensou, e alguns segundos depois disparou:

“Nos tempos da mocidade 
Eu com saudade bebia
Hoje eu bebo com saudade
Da saudade que eu sentia”.

Quase era aplaudido de pé. Conversa, naquelas ribeiras, era coisa de gente grande. Talvez, por isso, menino não podia atrapalhar. Tinha futrica, é verdade, mas, também, tinha erudição. A cidade era empestada de rodas de conversas pelas calçadas, em nenhuma delas menino passava no meio. 
Os adultos conversando e os meninos brincando de barra-bandeira, garrafão, peteca, bola de gude, pega-pega, futebol de rua, todos descalços. 
Quando os adultos estavam conversando, crianças tinham mais liberdade, desde que não passassem entre eles e não fugissem dos olhares. Isso era mandamento divino escrito nos lajedos firmes do sertão, pelos escribas que inventaram o Seridó.

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