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segunda-feira, 5 de março de 2018

A confraria

Aqui é proibido chegar bêbado. Sair, pode
Heraldo Palmeira


Todos os frequentadores estão preparados para 
resolver ou rir dos problemas do mundo 
e voltar para casa com outros tantos insolúveis

Há quase 25 anos era somente um sebo de CDs – compra, venda e troca. O dono ficava sentado na calçada do outro lado da rua, num boteco, tomando sua cervejinha. Quando entrava algum cliente, ele dava um subtotal, atravessava e atendia o amante da música. Claro, torcendo para aquilo demorar pouco, pois as louras geladas são temperamentais, esquentam logo. Ainda mais esperando do outro lado da rua, naquele ambiente tropical.

Dois anos depois de abertas as portas, já no endereço atual, um amigo trouxe algumas latinhas de cerveja. Estava aflito com um problema pessoal e queria desabafar com o dono do sebo. Daí surgiu a “necessidade etílica” de colocar uma geladeira dentro da loja.

Uma gigante multinacional quis tocar um solo e ofereceu um cooler para refrigerantes, que o operoso comerciante tratou de, retiradas as serpentinas, transformar em geladeira para as latinhas da mesma marca de cerveja que vende até hoje. Naquele tempo, fazia a festa dos abnegados da música, pois não cobrava por elas – quem comprasse CDs bebia de graça.

A empresa – que também era dona da marca de cerveja escolhida – não gostou da traquinagem e recolheu o cooler. O homem viu-se obrigado a comprar sua primeira geladeira. Os amigos foram trazendo panelas, talheres, pratos, fogão e montaram um novo acervo, culinário, que virou uma minicozinha industrial pronta para os melhores sabores preparados pelos iniciados na arte de cozinhar.

Quando os DVDs apareceram, a casa incorporou a novidade e seguiu oferecendo suas obras de referência e raridades. Aberta de segunda a sábado, com domingo reservado para a faxineira dar uma geral e entregar o serviço ao redor das dez da manhã.

Num dos domingos, o dono repetiu o costume de receber da moça a casa limpa para mais uma semana de prazeres que começaria apenas no dia seguinte. Um amigo ia passando, entrou e mudou a rotina.

A partir de então acabou a folga semanal e em todos os domingos a casa “abre a meio-pau”, nas palavras dos confrades. Tradução: fica aberta apenas a porta lateral que dá acesso a um beco, ligado diretamente à rua. Virou o segredo mais mal guardado da cidade!

Nesses anos de entra e sai, o lugar pode não abrir em determinado dia, se houver a menor suspeita de que não vai ter frequência que justifique escancarar a porta – um critério empírico que seguirá impossível de tornar-se estatístico, apesar de ser essa a formação acadêmica do dono. Considere-se também alguma crise de preguiça oportunista.

Aos sábados, o dia de maior frequência, os homens começam a chegar por volta das onze da manhã. Como se aquilo fosse religião. E é! Coisa de anos a fio, e o grupo se renova com um novato trazido por algum frequentador ou por descendentes dos pioneiros.

A confraria junta tudo quanto é modelo: jornalistas, publicitários, procuradores, juízes, empresários, políticos, médicos, dentistas, advogados, arquitetos, professores, escritores, músicos, aposentados, desocupados e o escambau. Todos preparados para resolver ou rir dos problemas do mundo e voltar para casa com outros tantos insolúveis.

O ambiente, uma casa antiga adaptada para juntar amigos, oferece três salas e banheiro. E um grande quintal, que serve para festas específicas, pontuais. Também acolhe lançamentos de livros, apresentações musicais e até conversas reservadas.

Tem logo na entrada os degraus derramados sobre a calçada, que dão acesso à primeira sala, onde está o balcão sagrado de onde o dono comanda a cena. Ao redor dele, apenas três banquetas e mais que outro tanto de amigos de pé, tomando a cerveja estupidamente gelada, uma das marcas do lugar, reforçada pela prosa sem futuro. Da melhor qualidade, interminável. Imprescindível!

O lugar é considerado um fenômeno. Não é bar, não é restaurante, não tem garçons nem cozinheiros e, mesmo assim, é o maior ponto de venda (no Estado) da embalagem long neck daquela mesma cerveja de sempre, que chegava em latinhas nos tempos inaugurais.

Simples de entender: a confraria não é lugar de paladares amadores. Para dar conta da sede de quem chega, cinco geladeiras comerciais vivem abarrotadas de garrafinhas. É um ambiente prioritariamente masculino, mas as mulheres, quando resolvem aparecer, são sempre bem-vindas e são cercadas de cavalheirismo.

O bar, operado exclusivamente pelo dono detrás do balcão, também oferece uísques e vinhos honestos, e refrigerante – aquele mesmo do cooler transformado em geladeira. A minicozinha industrial é de uso livre dos comensais, que trazem o que bem entendem para preparar e dividir com os amigos. A limpeza é um dos mandamentos mais respeitados, quase lei promulgada em uma das placas do ambiente.

Vez ou outra, algum incauto produtor de cervejas especiais chega tentando propor degustação e comercialização da sua maravilha. O dono nega, elegante e taxativo. Explica que ali é um lugar para quem gosta de “beber com força, como eu”. Muito justo. Qualquer degustação metida a besta interromperia o ritmo quase industrial do consumo tradicional e desafetado da confraria.

A casa abre em dois turnos, antes e depois do almoço, com longo intervalo entre eles, porque ninguém é de ferro, muito menos o dono. Algumas placas de madeira, dessas encontradas em qualquer feira de artesanato, dão coordenadas do lugar:

Nesta casa não temos empregada. Faça sua parte.

Cerveja faz mal quando falta.

Eu bebo pra ficar ruim, mesmo. Se fosse pra ficar bão, eu tomava remédio.

É proibido chegar bêbado. Sair, pode.

Não houve qualquer planejamento para transformar o fenômeno Letra & Música – um sebo de CDs que virou sebo de DVDs – em confraria. Tudo foi acontecendo naturalmente, com o esfacelamento do mercado da música.

O lugar já era tão indispensável, que ninguém permitiria que fechasse as portas só porque o negócio da música gravada – que abriu aquelas portas – havia sido tragado no mundo todo pelas plataformas digitais. Ora, era motivo frágil ante o poder da boemia. Havia ainda muito malte e lúpulo para misturar na água e fazer cerveja da boa. Que ali se transforma em fonte inesgotável de prazer dourado, transparente, refrescante, tão gelado que parece haver uma camada de mofo nas garrafinhas que saem das geladeiras.

Os frequentadores costumam trocar apertos de mão ao entrar e cumprimentar todos os presentes. Não raro, algum chega à beira do balcão confessando dívidas anteriores, esquecidas pelo teor etílico e pela conivente vista grossa do dono. Passo seguinte à confissão, o devedor, além da gozação generalizada, é logo convocado ao pagamento para “não ficar mal falado pelos outros”.

Ainda há um acervo de CDs e DVDs na casa, mais como referência de memória, atributo decorativo, mera alusão a um tempo que já vai se perdendo no tempo. Mas, hoje, o negócio principal é o afeto que se encerra em garrafas, panelas e conversas de amigos.

Ninguém precisa mais atravessar a rua, o dono não apressa nenhum atendimento, apenas rege a cena com fala mansa, sorriso constante, voz grave e branda. E abridor de garrafas sempre ao alcance da mão, já que o uso é quase constante.

Ouso dizer, é lugar dos mais agradáveis de Natal, que bem se traduz numa das placas – que pode estar em qualquer lugar, mas ali tem teor premium, quase de verdade absoluta:

Esta casa parece um hospício, somos todos loucos uns pelos outros.
Dedicado a Ary Ramalho, o dono.

Um comentário:

  1. Mano Véio,
    Nota 10!!!
    Belíssima e justa homenagem à Confraria e aos seus confrades.

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