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sábado, 19 de dezembro de 2020

O Rei


Tortura de amor
Carlos Eduardo Santos

No jornalismo descobri muitas coisas e obtive respostas sobre fatos interessantes que poucas pessoas conhecem. Alguns deles aqui me reporto, para gaudio do público leitor.
Em Campina Grande, hospedado no Rique Pálace Hotel, solicitei ao gerente uma mesa para instalar minha máquina de escrever portátil, a fim de começar a redigir uma reportagem para o Diário de Pernambuco.
O melhor lugar escolhido foi no restaurante do hotel, onde me arranjaram uma mesa ampla, em horário de pouco movimento. Estava em missão jornalística, a fim de cobrir eventos no Clube de Caçadores e numa Escola de Paraquedismo que ali existia.
Como se sabe, a “Rainha da Borborema” é rica em valores e pioneirismo. Espalhei a papelada com as anotações e fotografias e comecei a montar a reportagem.
Numa das mesas, bem afastado, olhando para a janela, estava um cidadão todo de preto e chapéu de vaqueiro, entornando uma bebida. Um tipo estranho. Mas fui cuidar do meu ofício.
Meti o sarrafo. Fiquei trabalhando de frente para o suposto viúvo. Depois de algum tempo, ao terminar a redação, comecei a arrumar a papelada e fechando a máquina, percebi que ele se levantara para vir até onde eu estava.
Perguntou se eu era escritor. Respondi ser apenas um aprendiz de jornalista; e pedi desculpas pelo ruído do teclado. Achou graça e bateu em meu ombro com afeição.
Pediu licença, puxou uma cadeira e sentou-se. Parei de trabalhar a fim de escutá-lo; mas na verdade havia concluído a tarefa. Ele começou a fazer perguntas sobre jornalismo, levando-me ao direito de fazer o mesmo com relação à sua estranha pessoa.
– Tenho muita vontade de ser artista; um cantor de fama. Estou tentando – disse-me.
Saquei meu cartão-de-visita e entreguei, perguntando seu nome e se era fazendeiro.
– Não. Sou Eurípedes. Vivo do palco. Canto e vendo meus discos após os espetáculos nos cinemas, nos clubes e outros palcos. Vivo viajando por este Nordeste ensolarado.
Aí comecei a pensar que já conhecia o sujeito e não sabia de onde. Depois me lembrei que era das capas de discos!
– Por que está vestido de preto?
– Bem, quando eu era menino apreciava muito o cowboy do cinema, Durango Kid. Adulto, e já cantando em vários lugares, resolvi adotar seu traje e me apresento, inclusive, de chapéu, utilizando o mesmo estilo, para firmar minha imagem de marca. Meu nome como cantor é Waldick Soriano.
Surpreso, levantei-me respeitosamente e dei-lhe um abraço fraternal, citando várias de suas músicas que eu tanto apreciava, sobremodo: “Tortura de Amor”. Pedi-lhe desculpas por não o haver reconhecido logo, porque jamais o vira tão de perto. Somente através da voz e de capas de discos nas lojas.
Soltou os cachorros. Descreveu sua mini-biografia. Declarou que fora abandonado por sua mãe e a marca da solidão o acompanhava. Uma espécie de recalque, tornando-se a inspiração de cada uma de suas melodias. Naqueles anos já contava com mais de 400 canções gravadas em cerca de 30 discos long-play.
Fiquei admirado e seria outra reportagem para o jornal. Nunca fiz. Só agora me reporto ao fato porque será importante dizer aos leitores porque ele só se apresentava de preto.
Fora batizado Eurípedes Waldick Soriano, mas resumiu o nome por sugestão do empresário. Tinha história de luta. Depois de haver sido garimpeiro, trabalhou na roça e como caminhoneiro de seu pai. Mostrou-me as mãos calejadas pela enxada no garimpo.
Rindo, comentou que a buzina do caminhão tinha “três bocas” e dava pra representar três tons diferentes, como sendo o início de uma música. Quando chegava às cidades, a mulherada abria as janelas para saudá-lo logo que o som das buzinas se espalhava: "Waldick chegou!!!. Era uma alegria"! 
Riu-se em gabação e continuou:
– Houve um tempo em que meu pai achou que eu, com quase 30 anos, estava parado na vida. Só queria cantar, tocar violão e namora, e isso não sustentaria uma família. Fui pro garimpo e ganhei o suficiente para ir fazer fortuna em São Paulo. E disse ao meu velho: Se eu não obtiver sucesso não voltarei mais. Todavia, quando buzinar na esquina da rua no meu “possante”, pode crer que estou no auge.
Em tom de galhofa, contou que certa feita, nas suas doidices de “juventude retardada”, pegou um cavalo e desfilou nas ruas de Caiteté, na Bahia, vestido de preto, como se fosse Charles Starret, o ator do cinema que encarnava “Durango Kid”. Mas foi vaiado pela rapaziada, pois não era dia de Carnaval.
Sanfoneiro e violonista, adotaria a vida artística como solução para progredir na vida. Já era poeta e escrevia as letras de suas canções. Começou a cantar em pequenas cidades do interior até ser contratado pela Boate Chanteclair, em Belo Horizonte, onde marcou sua qualidade e venceu.
Seus temas eram os amores mal sucedidos, as chamadas músicas para “dor de cotovelo”, as quais tocavam fundo à sensibilidade das pessoas.
Mandou-se para São Paulo, transportado num caminhão “Pau de Arara”, cheio de rapadura. Lá foi procurar a Rádio Record que era muito ouvida em sua terra. Não havia vaga para cantor.
Depois, na Rádio Nacional foi ouvido por um nordestino atencioso e obteve uma carta de apresentação. Venceu as resistências do destino. Mas, assim mesmo, em São Paulo, na fase anterior, teve que passar alguns meses como faxineiro num hotel, engraxate nas ruas e passou muito aperto.
Gravou o primeiro disco cantando músicas de sua autoria. Obteve sucesso, se apresentando pelo interior de São Paulo onde fez espetáculos. Seu maior êxito, na década de 1950, foram as músicas românticas: “Quem és tu?” e “Eu não sou cachorro, não!”. “Estouraram”, como se diz. Passou a disputar com os grandes nomes do Rádio.
Como compositor – disse-me – Orgulhava-se de ter músicas gravadas por Roberto Carlos, e produziu um disco só com músicas do “Rei da Juventude Brasileira”. Muitos outros grandes cantores gravaram suas músicas.
Todavia, tinha que vender discos. Tempos depois, ganhou dinheiro e enfrentou o árido sertão da Bahia, sua terra, num automóvel Ford Galaxie. Chegava nas cidades, parava o carro numa praça para chamar atenção sobre sua presença. Alugava os cinemas para se apresentar e depois vendia discos autografados. A princípio o empresário era ele mesmo e tinhas suas artimanhas e marketing.
A partir daquele encontro em Campina Grande, fiquei sabendo porque o cantor sempre se apresentava de preto e com chapéu de cowboy. Era apreciador do astro do cinema. No íntimo desejara ser Durango Kid, o Cavaleiro do Bem.
Teve fama, ganhou dinheiro, mas gastou parte da fortuna em grandes noitadas e com muitos filhos e esposas que sustentou. Mereceu um filme produzido por Patrícia Pilar. Hoje é lembrança imorredoura todas as vezes em que ouvimos seus maravilhosos boleros, dentre eles, um com letra e música de sua autoria:

Tortura de Amor

Hoje que a noite está calma
E que minh’alma esperava por ti
Apareceste afinal
Torturando este ser que te adora
Volta, fica comigo
Só mais uma noite
Quero viver junto a ti
Volta, meu amor
Fica comigo, não me desprezes
A noite é nossa
E o meu amor pertence a ti
Hoje eu quero paz
Quero ternura em nossas vidas
Quero viver por toda vida
Pensando em ti.

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