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segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Prazeres intensos

Rever o Chile soa como grande prazer (Heraldo Palmeira/Reprodução)
Heraldo Palmeira

Rever o Chile soou como grande prazer. Desta vez, entreguei toda a programação local a um especialista: o guia Guillermo Silva, que conheci na minha primeira visita ao país, em 2008. Desde então, vieram outras visitas e fomos nos tornando amigos. Um homem admirável que não titubeou, num momento de crise financeira, em suspender o curso de direito para que o filho continuasse estudando. Enternecido, ele me disse: “Eu posso esperar e retomar algum dia, o menino, não”.

O dia ensolarado da sexta-feira fez Santiago encantadora durante o trajeto do aeroporto ao bairro de Vitacura, onde estava o nosso hotel. As duas janelas do quarto descortinavam a grandeza impassível da Cordilheira dos Andes.

O sábado de sol amanheceu propício à caminhada pelo centro da cidade, bem mais calmo do que nos dias de semana. Para começar, a Igreja de São Francisco e a Catedral Metropolitana, dois monumentos nacionais cuja beleza é de tirar o fôlego. A primeira, que também abriga a padroeira Virgen del Socorro, é bem mais calma e permite recolhimento para quem desejar fazer orações. A segunda vai estar sempre repleta de turistas.

Depois do religioso, o profano da visita a um “cafe com piernas”, verdadeira instituição chilena onde as garçonetes trabalham seminuas qualquer que seja a estação do ano, vestidas em biquínis minúsculos. Esses cafés normalmente estão instalados em pequenas galerias comerciais e suas vidraças são opacas, impedindo a visão interna para quem passa pelo lado de fora.

Embora o ambiente seja essencialmente masculino, as mulheres podem visitar sem qualquer problema. Os engraçadinhos devem tomar cuidado e nunca confundir as moças com garotas de programa. Há quem garanta que alguns desses endereços tem cômodos para contatos mais íntimos, sempre rápidos, mas qualquer passo adiante tem de ser muito bem calculado.

Observar as ruas animadas e o comércio em plena atividade é um bom exercício antes do almoço no Bar Nacional 2. Trata-se de um local frequentado pelos chilenos. Existe o número 1 – onde funciona também a parte administrativa da empresa – mas o 2, na Calle Bandera, (quase esquina com a Huérfanos), é muito mais caloroso e indicado. Esse endereço não faz parte dos roteiros turísticos e foi um presente de aniversário que o Guillermo me deu, quando eu disse que desejava ter um dia de chileno naquela visita de 2008.

Dentre todos os sabores oferecidos, é recomendável se curvar ao pastel de “jaibas”, um grande pastel de caranguejo desfiado. Para os menos esfomeados pode servir até como prato principal, e custa barato. Quem gosta de sucos naturais deve experimentar o de “chirimoya” – deliciosa fruta nativa da Cordilheira dos Andes que para nós brasileiros vai soar parente próxima da fruta-de-conde e já frequenta empórios daqui.

No domingo, visita à vinícola Concha y Toro, que deve constar no programa apesar do clima totalmente comercial. Torça para não ter como guia uma mulher deslumbrada com a França. E nem um grupo de brasileiros animados pelos tragos gratuitos.

Adiante alguns quilômetros percorridos em simpático ambiente rural, o grande prêmio do dia: conhecer a vinícola Santa Rita com seu espetacular Museo Andino. Um almoço soberbo escoltado por um vinho honestíssimo, no restaurante instalado em uma construção secular da propriedade, antecedeu a visita à linha de produção da casa. Algo precioso para quem se interessa pelo negócio do vinho com um olhar mais amplo do que a simples busca de compras engarrafadas. Torça para ter como guia uma moça bonita chamada Maria Jesús – torça para que ela ainda trabalhe lá –, que conhece seu ofício a fundo e conduz o visitante com uma elegância incomum até mesmo para o alto padrão de elegância dos chilenos.

Na segunda-feira, dia de conviver com o ar recatado e chique de Viña del Mar e almoçar no Delicias del Mar, instalado na Avenida San Martín diante das pedras onde os leões-marinhos costumam vir exibir sua preguiça durante longos cochilos ao sol. Tudo isso com uma vista soberba do Pacífico e da requintada avenida beira-mar, acrescida dos contornos de Valparaíso lá bem ao extremo de onde o olhar alcança daquele ponto.

Antes de seguir viagem experimente caminhar do hotel Del Mar, com seu imponente cassino, até o hotel San Martín, cujo restaurante é outra ótima opção para um almoço ou jantar elegante e bem pertinho do mar.

Para queimar os excessos à mesa, nada como subir as ladeiras de Valparaíso e conhecer as diversas influências estrangeiras da sua construção. Lá do alto, o porto é uma imagem quase onipresente e ainda inclui a vizinha Viña del Mar ao longe. Passear em La Sebastiana, uma das casas de Pablo Neruda, revela o olho clínico do escritor na hora de escolher vistas espetaculares.

A terça-feira foi dividida em dois atos. O primeiro, viajar até El Quisco e andar em Isla Negra, outra residência famosa de Neruda. De novo, muitas pistas de quão “bon vivant” era aquele homem. O lugar é lindo e o mar tem papel fundamental no clima que cerca a casa e na vista deslumbrante que oferece.

O segundo ato foi a surpresa engendrada por Guillermo: um almoço no Kaleuche, restaurante instalado à beira do Pacífico a poucos minutos de Isla Negra, cujo nome foi inspirado no Caleuche, navio fantasma que povoa o imaginário popular dos chilenos com suas lendas e festas fantasmas a bordo.

Isolado entre pedras numa faixa da areia marinha, a imagem do restaurante se destaca na paisagem como que saída da imaginação. Pescados maravilhosos, ambiente belíssimo em pedras, tijolos e madeira com decoração num conceito “pop art”, serviço impecável e preços inacreditáveis diante do que oferece.

A quarta-feira foi reservada para uma agenda mais leve. Gosto de fazer isso na véspera dos grandes deslocamentos, seja para continuar as férias, seja para a velha e boa volta para casa. Acordei tarde, ainda encantado pelas lembranças de Isla Negra, do almoço no Kaleuche e das lendas do Caleuche.

Durante o trajeto até a região central da cidade, o prazer de uma boa conversa com Arturo, um senhor elegante que faz ponto como taxista na porta do hotel. Paramos para ver a impecável cerimônia da troca de guarda do Palácio de La Moneda, antes de seguir para o Mercado Central de Santiago. Sem qualquer dificuldade ou custos adicionais, marcamos a volta para dali a duas horas.

O mercado é programa obrigatório. Inaugurado em 1872, oferece uma quantidade incalculável de produtos de diversas origens. O prato de resistência do almoço é o “centolla”, o caranguejo gigante da Patagônia chilena que pode pesar até 2,5 kg. Para saborear esse mostrengo dos mares, as melhores escolhas são o Donde Augusto – mais refinado e que ocupa quase a metade do mercado – ou o El Galeón. Não é definitivamente um prato barato (o grande é indicado para até seis pessoas). Prepare o bolso e seja feliz. Afinal, essa não é uma aventura diária.

Arturo foi pontualíssimo e nossa conversa continuou animada no trajeto de volta ao hotel. Mesmo sem nunca ter me visto, ele fez questão de receber o pagamento pelas duas corridas somente ao final do serviço, numa cortesia de causar ótima impressão até aos viajantes mais tarimbados.

Depois de tantos lugares adoráveis e fotografias a granel, a quinta-feira amanheceu com um aperto de saudade no coração. Dia ainda escuro, Guillermo estava a postos na recepção do hotel. Como grande cavalheiro que é, cobriu o pequeno grupo de atenção, providências, conforto e segurança por toda a visita.

No aeroporto, fez questão de ficar com todos os pesos chilenos que me restaram no bolso num câmbio a cotação justíssima e entregou-me os dólares correspondentes. Nosso abraço de despedida foi cercado de emoção e da promessa firme de nos vermos em breve. Alcançamos o grau de bons amigos. E cobro, de vez em quando, a visita que ele prometeu fazer para conhecer o Brasil.

Documentarista, produtor cultural e colaborador do Bar de Ferreirinha

Um comentário:

  1. Excelente narrativa. Já visitei Santiago e pretendo voltar. Lugar e povo maravilhosos.

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