Pontifícia Basílica Menor de Nossa Senhora da Guia do Acari
Heraldo Palmeira
Sempre que o sacro colégio de cardeais se reúne em conclave, em Roma, e elege um novo sumo pontífice da Igreja Católica Apostólica Romana, uma fumaça branca densa enche uma chaminé do Vaticano e sobe aos céus. É como se aquela fumaça, um simbolismo, traduzisse um mistério que salta das coisas dos homens, nos ligasse diretamente ao divino de alguma maneira.
Pouco depois, ouve-se o anúncio solene do texto Habemus papam (Temos um papa), lido na varanda central da Basílica de São Pedro por um cardeal especialmente designado. É a informação oficial de que um novo papa está eleito e que ele aceitou a nobre missão de ocupar o trono de Pedro.
Em seguida, ele é apresentado ao mundo e profere sua primeira bênção Urbi et Orbi (À cidade e ao mundo), iniciando seu tempo sagrado de guardar e pregar a Palavra pelo mundo.
Uma basílica é uma dignidade concedida pelo papa, a que uma igreja é elevada quando reúne um conjunto de fatores especiais para tal merecimento: veneração devotada pelos fiéis, elevada importância histórica, valor artístico e cultural da arquitetura e das instalações litúrgicas. Como passa a ter uma ligação direta com o santo padre, precisa conter relíquias e estrutura para receber o principal sacerdote de Cristo.
Desde os primeiros movimentos de ocupação do território brasileiro após o Descobrimento, a determinação do colonizador europeu era distanciar a pecuária da cultura litorânea da cana-de-açúcar, primeiro instalada, inclusive para evitar conflitos pela terra.
A época do couro, no ciclo dos criadores de gado, permitiu que grandes partes do território interior da capitania do Rio Grande do Norte fossem ocupadas com a criação de rebanhos bovinos.
No início do desbravamento do Seridó, o ambiente era dominado pelas agressivas tribos canindés, cariris, jenipapos, pegas, sucurus e tarairiús, embora os indígenas do sertão fossem designados genericamente como “tapuias” – na linguagem regional dos sertanejos eram denominados “caboclos brabos”. A conquista foi hostil, com a exterminação ou escravização (de pequena parte) daqueles povos primitivos.
A partir de 1676, as primeiras terras foram concedidas ao redor do rio Acauã para gentes vindas de Pernambuco e Paraíba, dando início à acomodação dos rebanhos. Tempos depois a atividade já ganhara importância econômica para sustentar, com seus impostos, também o desenvolvimento das capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba.
O vale do rio Acauã, que tinha o peixe acari entre seus bons frutos, terminou gerando o nome do lugar. Não demorou, Acari foi se transformando em polo importante do manejo e comércio do gabo bovino nas propriedades que se espalhavam ao longo dos rios da região.
Os iniciadores da colonização da região vieram das famílias Araújo, Azevedo, Cananéia, Bezerra, Dantas, Faria, Fernandes, Galvão, Garcia, Medeiros, Monteiro, Nóbrega e Silva. Há quem garanta que os Araújo foram os primeiros a chegar e praticamente todos os seridoenses são seus descendentes.
Dois homens daqueles primórdios, ambos pioneiros na colonização do Rio Grande do Norte, tiveram em tempos diferentes importância fundamental para o desenvolvimento da Igreja no território de Acari:
1) Manuel Esteves de Andrade, sargento-mor nascido na Bahia, prestou seus serviços primeiro em Pernambuco, depois na Paraíba. Chegou ao Seridó em 1725 exercendo a função de cobrador de impostos. Por circunstâncias familiares, terminou erguendo a primeira igreja e, por isso, é considerado o fundador da cidade.
2) Thomaz de Araújo Pereira, tenente-coronel nascido em Viana do Castelo, na região do Minho, norte de Portugal, chegou ao Seridó em data imprecisa a partir de 1734. Assumiu o posto de capitão-mor do Regimento de Cavalaria de Ordenanças da Ribeira do Seridó. Da sua descendência veio o padre Thomás Pereira de Araújo – essa era a grafia que ele usava para assinar o próprio nome –, considerado um dos grandes patriarcas da cidade.
Logo depois de chegar a Acari, Manuel Esteves terminou comprando terras diretamente do parente Nicolau Mendes da Cruz, homem que detinha boa extensão de propriedade na região, mas estava decidido a voltar para o Recife, sua terra natal.
Solteiro – nunca casou ou teve descendentes –, Manuel queria ter a companhia da mãe, dona Maria da Purificação, que continuava vivendo no Recife. A senhora de grande fé colocou uma condição inegociável: que o lugar tivesse uma capela onde ela pudesse rezar e manter suas práticas religiosas.
Segundo a tradição oral de transmissão da história, e registros apostos em livros de tombo da paróquia, a origem da devoção à padroeira tem versões diferentes:
1) Dona Maria da Purificação, mãe do fundador, tinha devoção à Nossa Senhora da Guia.
2) Pela pujança da pecuária naqueles tempos, era comum guiar os rebanhos por diversos itinerários cercados de perigos nas terras do sertão. Nessas travessias havia a figura do vaqueiro-guia e pode ter vindo daí a escolha, em razão da fé dos vaqueiros e como delicada associação de proteção à função de guiar o gado. Essa hipótese tinha a simpatia do padre José Cortez, saudoso sacerdote acariense muito querido pela comunidade.
De acordo com versões populares, a partir da solicitação da mãe, Manuel, também muito religioso, teria sido orientado por um padre confessor (no Recife) a buscar recursos oficiais e autorização eclesiástica da diocese de Olinda, que tinha jurisdição sobre a região, para realizar a empreitada de erguer a capela dedicada à Nossa Senhora da Guia.
Os registros históricos guardam a petição assinada por ele em 1737, mas há versões dando conta de que obras foram iniciadas dois anos antes. A inauguração, com a bênção episcopal, ocorreu em 1738.
No altar, a chamada “imagem primitiva”, de estilo barroco popular – hoje mantida no pequeno altar da casa paroquial –, cujas feições e demais traços indicam que pode ter sido talhada por algum santeiro paraibano.
Há versões conflitantes a respeito de dona Maria da Purificação. Nunca esteve em Acari. Nunca morou em Acari, apenas visitou o filho duas vezes. Veio morar com o filho assim que a capela ficou pronta. Seja qual for a verdade, parece inegável a sua importância na história religiosa do lugar.
O povoado começou a se formar ao redor da pequena capela, que passou por obras de reforma e ampliação em 1792, quando adquiriu o belíssimo formato atual, cujo porte permite avaliar a pujança do lugarejo naqueles tempos.
Em 1833, a vila de Acari conquistou sua emancipação de Caicó e tornou-se município. Em 1835, com a criação da Paróquia de Nossa Senhora da Guia, o templo foi elevado à dignidade de igreja matriz.
Décadas depois, o padre Thomás Pereira de Araújo – desde seu ancestral português, o quarto homem de mesmo primeiro nome na família – era o pároco da comunidade. Diante da ameaça de o poder público confiscar as propriedades das irmandades religiosas, ele simplesmente vendeu as fazendas de gado e passou a dispor de bom capital nos cofres paróquia.
Dotado de grande visão de futuro, fez uma análise econômica do ambiente rural e urbano e vislumbrou a tendência de crescimento da comunidade. Assim, lançou-se ao empreendimento mais reluzente do seu legado: a construção da nova matriz no alto da colina sagrada dos acarienses. A obra, que teria começado em 1853, estendeu-se por doze ou catorze anos. O visionário ergueu um templo cuja imponência e beleza impressionam até hoje.
No Natal de 1862, quando a capela-mor já se encontrava coberta, foi celebrada a primeira missa, presidida pelo padre Thomás. A obra terminou em 1863 – a data alusiva está impressa no alto da fachada principal – “quando ela ficou coberta e fechada”, conforme crônica da época.
A partir dali, foram mais quatro anos de preparação, com a construção dos altares em madeira, pintura, paramentação (alfaias que permitem o funcionamento pleno de uma grande igreja, tais como roupas e vasos litúrgicos, toalhas, pia batismal etc.). E, óbvio, a belíssima imagem de Nossa Senhora da Guia, de estilo barroco, adquirida especialmente para a trasladação da antiga matriz, ocorrida na abertura da Festa de Agosto de 1867.
A partir da trasladação, a antiga matriz foi dedicada à Nossa Senhora do Rosário. Hoje, além da condição de a mais antiga do estado que ainda permanece de pé, é uma joia do patrimônio histórico de Acari, devidamente tombada pelo IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Em 2013, foi realizada uma grande reforma na matriz para comemorar o sesquicentenário daquele 1863 que está no alto da sua fachada principal, ano em que a obra de construção foi concluída.
Para mim, um ano de redobradas alegrias porque lancei o filme documentário Agosto em Acari, onde a própria comunidade deixou gravados sinais claros de que a fé dos nossos antepassados estava preservada numa atmosfera religiosa perene que vai atravessando gerações.
Também naquele ano histórico de 2013 ocorreram as primeiras ideias e conversas a respeito da elevação da matriz à dignidade de basílica. A partir de 2018, o processo finalmente ganhou corpo.
O documento foi publicado pelo Vaticano em 19 de março de 2021, no dia consagrado a São José, tão caro a nós sertanejos – ainda mais se chover, sinalizando inverno e farta colheita.
No dia 25 de março de 2021 tivemos a solenidade de dedicação, rito de consagração da matriz e do novo altar, e a publicação do Decreto Pontifício que elevou a nossa matriz à dignidade de basílica menor. Ali, a paróquia de Acari passava a desfrutar de um honroso privilégio pontifício, a ligação de seu principal templo por um vínculo especial de comunhão à Cátedra Romana de Pedro, ao papa.
Pena que a pandemia do coronavírus restringiu a solenidade apenas ao bispo diocesano de Caicó, ao vigário, alguns padres, à equipe da liturgia, ao maestro, ao coral reduzido e ao prefeito municipal com a esposa. Que festa teria sido se o povo de Deus pudesse participar!
Fechando a cerimônia, subiu aos céus de Acari a fumaça da enorme girândola de fogos, como se anunciasse ao mundo habemus basilica (temos uma basílica). Nos demos conta de que aquela matriz majestosa tatuada em nossos corações é agora a Pontifícia Basílica Menor de Nossa Senhora da Guia do Acari, a primeira e por ora única basílica do Rio Grande do Norte.
Correndo os olhos pelo decreto Domus ecclesiae, da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, onde estão listadas as normas para concessão do título de basílica menor, encontramos outras pistas importantes para tamanha conquista:
“A igreja, para a qual se pede o título de basílica, deve ser dedicada a Deus com o rito litúrgico e tornar-se, na diocese, um centro de atividade litúrgica e pastoral, sobretudo para as celebrações da Santíssima Eucaristia, da penitência e dos outros sacramentos, sendo exemplar quanto à preparação e desenvolvimento, fiéis na observância das normas litúrgicas e com a ativa participação do povo de Deus.”
“A igreja goza de certa fama em toda a diocese [...] ou ainda porque se venera em modo particular alguma imagem sacra. Se considerem também o valor da igreja, ou seja, a importância histórica e a sua beleza artística [...] pede-se ainda um suficiente número de ministros e um apropriado coral, para favorecer a participação dos fiéis também com a música e com os cantos sacros.”
A presença do acariense cardeal Eugenio de Araújo Sales na história recente da Igreja deve ser considerada com relevo. É inegável que ele deu conhecimento à Santa Sé do nome da cidade e sua fervorosa e secular vivência religiosa.
O trabalho virtuoso e incansável, bem como a serenidade dos sacerdotes Fabiano Dantas, Flávio Medeiros e Raimundo Sérvulo, dos quais sou feliz testemunha, ergueu e acomodou cada cristal do projeto no devido lugar e sem nenhum trincado.
O mais firme alicerce sempre esteve na comunidade que transformou Acari numa referência litúrgica, a partir da fé que nos guia desde os tempos dos desbravadores. Somos o povo que, acostumado a desafios, vai honrar mais e mais a nomeação que nos foi concedida pelo santo padre.
Também devemos aprender a conviver com uma nova realidade que provavelmente se instalará, a de destino de peregrinações e turismo religioso. Que Nossa Senhora da Guia, de sua basílica, nos dê sabedoria para manter nossa tradição de religiosidade e de acolhimento a quem chega. E que nos guie para operar as mudanças em benefício da obra pastoral e da comunidade que vimos construindo desde que o pequeno povoado foi se formando ao redor da capelinha erguida por Manuel Esteves de Andrade.
Jamais esqueçamos que a mais alta de todas as capelas é o nosso templo interno. Que assim seja!
Heraldo Araújo Palmeira,
Filho legítimo de Acari, no Domingo de Páscoa, 4 de abril do ano da graça de 2021
*Agradecimentos especiais a Adriano Campelo, Canindé Medeiros, padre Fabiano Dantas, padre Flávio Medeiros, monsenhor Raimundo Sérvulo e todos os historiadores, pesquisadores e diletantes que insistem na nobre missão de manter vivas nossas melhores histórias.
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